O alerta foi feito pelo Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (WFP na sigla inglesa): a cadeia de abastecimento alimentar na Ucrânia “está a colapsar”. “A circulação de mercadorias abrandou devido à insegurança e à relutância dos condutores”, adiantou o coordenador de emergência do programa para a crise na Ucrânia, Jakob Kern, esta sexta-feira numa conferência de imprensa.

Um problema que pode ser explicado pelos “ataques indiscriminados” e os “conflitos esporádicos” que se verificam não só nas estradas, como nas infraestruturas a noroeste, sudoeste e centro do país e que têm ameaçado o abastecimento de bens, refere o mais recente relatório do programa sobre a crise na Ucrânia, que fala também numa escassez de veículos para fazer a distribuição dos alimentos.

Já no início do mês, a maior cadeia de supermercados ucraniana, Fozzy Group, queixava-se que a falta de condutores e pessoas para transportarem as mercadorias, os confrontos nas estradas e a falta de combustíveis estavam a perturbar o abastecimento dos seus armazéns, noticiou o Wall Street Journal.

Também a empresa alemã Dr. August Oetker KG, que exportava levedura, fermento em pó e outros produtos de países como a Alemanha, Polónia e Roménia para a Ucrânia deixou de operar por não haver camiões que consigam entregar as mercadorias.

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Ainda assim, o Fozzy Group garantia ter um elevado stock de produtos nos seus armazéns e que 90% das cerca de mil lojas — a maioria em Kiev — ainda estavam abertas. O mesmo se passava com o retalhista holandês Spar, que referia ter 95% dos seus supermercados abertos. Com 65 supermercados em todo o país, esta empresa criou um fundo, a nível interno, para dar apoio às suas operações na Ucrânia e permitir a compra de produtos a fornecedores locais.

Resta saber se, ao dia de hoje, estas infraestruturas ainda estão todas operacionais ou se, por algum motivo, foram atingidas pelo conflito. De acordo com as declarações do responsável do WFP, esta sexta-feira, parte das infraestruturas no país foram destruídas e há muitas mercearias e armazéns vazios.

Os correspondentes do Observador em Kiev constataram que, neste período, grande parte dos abastecimentos são feitos através de comboio, uma vez que a circulação de camiões é mais difícil e perigosa.

A “missão suicida” dos condutores para distribuir comida

John Rich, presidente da MHP, a sexta maior exportadora de aves do mundo, não tem dúvidas do heroísmo dos condutores que continuam a trabalhar para garantirem que a população ucraniana tem o que comer todos os dias: “A distribuição é um pesadelo. Os motoristas são tão patrióticos, põem as suas vidas em risco.”

Esta empresa, refere a Forbes, deverá ser a maior empresa de distribuição alimentar que ainda está em funcionamento na Ucrânia. Apesar de atualmente deter mais de 900 mil hectares, a maior parte localizada na zona ocidental do país, a invasão russa fez com que perdesse três mil hectares e uma das suas infraestruturas de armazenamento de aves, nos arredores de Kiev, que ficou “completamente destruída”.

O empresário descreve mesmo o trabalho dos motoristas como uma “missão suicida”. O grande desafio, lê-se na revista, é fazer chegar a comida em segurança ao destino, uma vez que isso implica contornar pontes destruídas por bombardeamentos, evitar estradas que tenham sido atacadas e fazer desvios para não passar por postos de controlo. E, claro, manterem-se vivos.

Ainda assim, não se consegue chegar a todo o lado e a falta de produtos começa a fazer-se sentir. Nas redes sociais já começaram a circular imagens de corredores de supermercados praticamente sem produtos. Num vídeo partilhado há três dias por Andrey Liscovich, um antigo condutor de Uber que foi para a Ucrânia para dar apoio logístico, refere o jornal The Independent, é possível ver, num supermercado de Zaporíjia, várias prateleiras e caixas vazias — onde antes estavam frutas e vegetais.

@ukrdefensefund

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Também os correspondentes do Observador em Kiev dão conta de que há várias prateleiras vazias nos supermercados da capital e que mesmo os hotéis de cinco estrelas deixaram de ter tanta variedade — havendo apenas um prato por dia. Também não há restaurantes abertos na cidade, apenas quiosques e um ou outro café.

De acordo com um relatório da ONU, apenas 13% dos pequenos comércios na Ucrânia se mantêm abertos, sendo que 42% já fecharam permanentemente e 31% de forma temporária.

O empresário australiano que está a gerir a MHP, a partir da Eslovénia, assume que a situação está particularmente difícil a norte e a leste da Ucrânia. Nessas regiões, os supermercados que ainda estão em funcionamento têm várias carências a nível de produtos alimentares. Ainda assim, há hipermercados que continuam a comprar produtos diretamente à empresa, especialmente aqueles que se encontram na região oeste e sudoeste.

Com centros de distribuição a serem bombardeados, os supermercados estão a perder capacidade de fazer a distribuição”, afirmou John Rich à Forbes.

As cadeias de supermercados que recebem os produtos da MHP estão a conseguir pagar, garante o responsável, pelo que o trabalho feito pela empresa não é apenas humanitário. Aliás, o próprio governo ucraniano tem feito pagamentos pela distribuição de comida feita pela MHP.

Situação é mais grave em cidades cercadas

Segundo o responsável do Programa Alimentar Mundial da ONU, a situação das cadeias de abastecimento é particularmente preocupante em cidades que estão “cercadas”, como é o caso de Mariupol e Kharkiv, porque as reservas de comida e água estão a escassear e não tem sido possível entrar nos municípios para entregar bens.

Como a insegurança se mantém e as cadeias de abastecimento são interrompidas, as pessoas ficam numa situação de emergência mais grave no que diz respeito à fome e à subnutrição”, lê-se no relatório da WFP.

O presidente da MHP refere à Forbes que a empresa doa diariamente cerca de 330 toneladas de frango para alimentar os moradores de cidades como Kiev, Mariupol e Karkhiv. Em alguns municípios, os condutores desta empresa deixam os bens nos arredores, sendo que nos locais mais perigosos, a partir de determinado sítio, só mesmo a Cruz Vermelha é que faz o transporte das aves da MHP. Em troca, a empresa fornece combustível e já chegou a retirar mulheres e crianças de cidades mais fustigadas pelos ataques.

Mariupol, por exemplo, tem sido alvo de constantes bombardeamentos por parte dos russos e, segundo as autoridades ucranianas, cerca de 300 mil pessoas continuam sem conseguir sair, apesar de alguns corredores humanitários terem permitido a retirada de algumas centenas.

Há vários dias que a cidade portuária está sem comida, água e eletricidade e há mesmo relatos de que os moradores estão a derreter neve para terem o que beber.

Conflito poderá ter impacto nas cadeias alimentares a nível mundial

O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas, que compra parte das suas reservas de trigo à Ucrânia, sublinhou ainda que houve uma subida “sem precedentes” dos preços dos alimentos devido à guerra. Uma situação que pode ter impacto na “segurança alimentar” a nível mundial, especialmente nos países em que já existe fome. Esta crise, no entanto, poderá também criar “fome colateral” noutros locais, alertou ainda o coordenador de emergência do programa para a crise na Ucrânia.

Este aumento de preços tem impacto no trabalho desenvolvido pela organização. Este ano, o WFT já está a pagar mais 71 milhões de euros do que pagava por mês não só diretamente devido ao conflito, como também por causa da inflação. Esse valor, de acordo com Jakob Kern, daria para alimentar quatro milhões de pessoas.

O presidente da MHP — que antes do conflito exportava parte dos seus frangos, óleo de girassol e cereais, e agora apenas comercializa na Ucrânia — deixa ainda um aviso: as próximas três semanas serão cruciais. “O perigo para todos é se a Ucrânia não conseguir plantar nas próximas três semanas. Isso terá um impacto significativo”, garante John Rich, acrescentando que mesmo que o país consiga plantar e colher trigo, milho e girassóis, haverá “um défice significativo” de produtos.

ONU distribuiu de 55 mil toneladas de comida

Os funcionários do WFP no local têm criado parcerias com instituições locais para facilitar a assistência alimentar e dar dinheiro aos deslocados. No total, o programa tem fornecido cerca de 55 mil toneladas de comida a cidades ucranianas.

Em Kharkiv, por exemplo, o Programa Alimentar Mundial da ONU distribuiu 35,2 toneladas de pão a cerca de 141 mil pessoas e em Kiev foram dadas à administração local 473 toneladas de farinha e 108 toneladas de óleo vegetal.

Para os habitantes de Dnipro seguiram 218 mil toneladas de produtos alimentares secos, 11,3 toneladas de água e 17 toneladas de comida enlatada. Estão ainda a caminho da cidade mais 176 toneladas de produtos alimentares, como massas e farinhas vindas de Lviv e da Roménia. Já em Lviv, que tem acolhido pessoas oriundas de Kharkiv, Odessa, Kiev e outras cidades, foi implementado um sistema de distribuição de vales para duas mil pessoas.

Com cerca de 200 funcionários na Ucrânia e em países fronteiriços, o programa está a criar operações em países vizinhos não só para facilitar a distribuição de comida dentro do país, como também para dar apoio aos refugiados que chegam diariamente.

O objetivo? Ajudar 3,1 milhões de pessoas afetadas por esta guerra e 300 mil refugiados ucranianos. Para isso, contudo, o Programa Alimentar Mundial da ONU precisa de mais 590 milhões de dólares (cerca de 535 milhões de euros), para serem gastos entre março e junho de 2022.