Já não chegava termos levado com aquele sotaque e o tom semi-esganiçado e infantil de Paolo Gucci no filme “Casa Gucci”? Jared Leto achou que não. Por isso apresenta-nos Adam Neumann, um “entrepreneur” (palavra tantas vezes repetida de uma forma que só ele sabe dizer) israelita que quer fazer fortuna em Nova Iorque. “WeCrashed” baseia-se numa história verídica, o que significa que Neumann existe. E é, de facto, israelita, mas dos registos que existem por essa Internet fora dá para perceber que a versão da nova série da Apple TV+ — cujos três primeiros episódios estão disponíveis desde sexta-feira, 18 de março — não parece ter tiques tão carregados. Mesmo que tivesse, eu se calhar teria sugerido a Leto levar a coisa com calma, porque aguentar oito capítulos (e o homem anda sempre por lá) com esta voz é um suplício.
A provação só se tolera porque temos realmente vontade de saber o que raio aconteceu para, número um, uma startup fazer uma ascensão tão fulgurante que chegou a valer 47 mil milhões de dólares (o equivalente a 42,49 mil milhões de euros) e, número dois, espalhar-se ao comprido quase tão rapidamente, graças à falta de noção e à megalomania dos seus fundadores.
A história começa pelo fim, com um Leto com cabelo de messias e pé descalço de messias a ser arrastado da cama para uma reunião com a direção da WeWork, que está decidida a removê-lo de CEO. Se isso acontece ou não, só se sabe lá para os últimos episódios — isto se entretanto não forem pesquisar os factos verídicos. Contextualizado aquele que pode ser o fim da empresa, o melhor é começar pelo início, o que significa recuar 12 anos. Adam Neumann é então um tipo em busca de uma ideia genial. Em vez disso, é basicamente gozado numa aula de gestão onde apresenta um conceito de vida em comunidade. A sorte é aparecer-lhe no caminho Miguel McKelvey (Kyle Marvin), uma pessoa com capacidade zero para dizer que não e que embarca basicamente em todas as ideias (boas e más) de Adam. Função principal: lacaio (para não lhe chamar pior).
[o trailer de “WeCrashed”:]
A história da vida em comunidade não vai a lado nenhum mas a ideia transforma-se então em trabalho em comunidade, com um local onde qualquer negócio pode coabitar, há mesas de matraquilhos e um bar de Kombucha. Adam Neumann consegue vender qualquer coisa — é persuasivo, chato e sonhador dentro da sua excentricidade — e, de repente, há espaços de cowork espalhados por Nova Iorque inteira. A WeWork está lançada e o visionário “entrepreneur” transforma-se numa espécie de rock star. O lacaio, Miguel, será sempre o lacaio, o chamado pau para toda a obra. Quem divide os louros (ou tenta, pelo menos) com Neumann é Rebekah Paltrow Neumann que, que passa de muito pouco impressionada a caidinha em dois segundos. O amor dos dois é uma espécie de jogo de pingue-pongue entre o tóxico e o fusional. São ambos narcisistas, cada um a pairar numa realidade alternativa que nem sempre é igual para os dois.
Ela é toda das energias, do veganismo, do ioga, das igualdades, quer “elevar a consciência do mundo” (conceito a que recorre muitas vezes) mas não se preocupa muito com princípios quando se prepara para estoirar uns quantos milhões para fazer obras e mudar o feng shui da cozinha. Se calhar tenho de rever a minha opinião: há um suplício pior do que a voz irritante adotada por Jared Leto e chama-se “que raio de timbre é este que a Anne Hathaway ora finge, ora perde?”. Eles é que são os profissionais, lá terão estudado as personagens, de certeza que tiveram coachs de voz e coisas do género, mas Hathaway dá uma voz grave a Rebekah Paltrow (parentesco com a prima Gwyneth que ela só usa quando lhe convém, tá?) e de vez em quando parece esquecer-se e volta à voz fofinha e simpática que tem geralmente. É confuso.
Esta personagem mexe com os nervos de uma pessoa e, nem quando realmente merecia um bocadinho mais de crédito dado pelo marido, dá para simpatizar com ela. É fútil, gananciosa e completamente alienada da realidade. Lembra-se que quer ser atriz: tem aulas, lê muitos livros e arranja forma de entrar numa peça; lembra-se que a sua vocação é fazer a saudação ao sol: vamos lá ser professora de ioga; lembra-se que quer abrir uma escola: ‘bora “elevar a consciência do mundo”. O que é que se ensina ali? Não interessa.
Adam e Rebekah tanto se destroem mutuamente como são a fonte de energia que alimenta o outro e o faz ir sempre mais longe. O mais longe aqui é pedir mais, e mais, e mais, e mais empréstimos. A WeWork era uma empresa a crescer vertiginosamente, isso era inegável, mas gastava mais do que ganhava e, quando isso não faz soar todos os alarmes, os problemas podem demorar mas vão chegar.
“WeCrashed” tem ritmo, é clara na evolução da história, eficaz quando faz acompanhar a narrativa com números que mostram a rápida decadência de uma empresa que vive mais de festas do que de eficácia. No entanto, não há um real interesse em personagens que podiam acrescentar qualquer coisa, como os funcionários. Pertencem à WeWork? Estão ali só a partilhar o espaço? Tinham alguma noção do que estava a acontecer? O que é que isso interessa para a história? Claramente, para os guionistas da produção da Apple TV+, nada.
Parece loucura o facto de uma empresa chegar a valer tanto quando estava, afinal, afogada em dívidas. Foi preciso chegar lá um investidor (uma ótima personagem interpretada por O-T Fagbenle) mais inteligente do que todos os outros para por meia dúzia de pessoas a fazer umas contas que, pelos vistos, ninguém tinha feito até ali. Se foi exatamente assim ou não, não sabemos, mas o facto é que a WeWork chegou realmente muito longe sem ter capacidade para acompanhar o seu crescimento — as pessoas que lhe deram vida acabariam por ser a sua ruína.
Tudo isto faz lembrar “Inventing Anna”, outra série inspirada em factos verídicos (da Netflix) sobre uma jovem que conseguiu enganar a elite norte-americana fazendo-se passar por uma herdeira russa quando, na verdade, não tinha um cêntimo. Faz lembrar ainda mais “Inventing Anna” porque Anthony Edwards resolveu aceitar em “WeCrashed” um papel que parece basicamente o mesmo que fez na produção da Netflix. Fascinado com os visionários Anna e Adam, é dos primeiros a dar-lhes a mão e a libertar os milhões. Longe vão os tempos em que ele era Mark Greene em “Serviço de Urgência” — vê-lo nestas participaçõezitas dá pena.
Há muitos números, muitas burocracias que não são propriamente fáceis de acompanhar para quem não está familiarizado com a realidade norte-americana. Contudo, o essencial está lá: esta é a história de um excêntrico megalómano que teve o mérito de montar um negócio e um império quando ninguém lhe reconhecia valor e é também a história de como tudo se desmoronou. A montanha-russa é inacreditável mas a viagem faz-se bem. Só não sigam os conselhos de Adam Neumann se quiserem ser um “entrepreneur”.