A primeira coisa que gostaria de saber acerca do impacto cultural de “Instinto Fatal” é: quanto dispararam, ao certo, desde então, as vendas de picadores de gelo? Estamos a falar do objeto menos prático da Criação, OK? Inventado para resolver o problema do segundo objeto menos prático: o calhau de gelo, disponível por qualquer módica quantia numa bomba de gasolina perto de si. Ainda assim, milhares (milhões?) de pessoas o compraram depois de março de 1992. Ainda hoje é sem dúvida detetável nos apartamentos mais modernaços. Mesmo que seja uma espécie de degrau anterior da evolução tecnológica, qualquer coisa que o Homo Faber costumava usar para desfazer o gelo à volta do salmão e, enfim, lhe afinfar o dente. E notem bem: o picador era, no filme, a arma do crime, uma das formas mais dolorosas de morrer que se tem visto nesses últimos cento e tal anos de cinema. Mas quem respeitava umas couvettes de gelo depois daquilo? Onde estava o sex appeal? A pica que dava o picador.

Isto é, dir-me-ão: se estreasse hoje, o “Instinto Fatal” não teria o mesmo impacto. Não. Mas isso é justamente porque vivemos num mundo que também é o que é porque foi um pouco transformado por “Instinto Fatal”. Sharon Stone, Michael Douglas, Paul Verhoeven, a fotografia Jan de Bont, o argumento de Joe Eszterhas, a banda sonora de Jerry Goldsmith, criaram um desses raros objetos culturais que mudam qualquer coisa nos tempos.

Esta crónica, porém, é menos sobre o filme e mais sobre como o vimos. Miúdos, vocês não fazem ideia (e aqui começam as histórias de guerra de uma geração pior que burguesa)… Dizem-me que foi há 30 anos, mas se calhar foi só há 28 ou 27. Nos anos 90, as coisas não estreavam imediatamente nos nossos ecrãs; havia intervalos de meses, muitos meses, um ano, dois – podiam nunca chegar. Sim, “Instinto Fatal” estreou nos cinemas portugueses em Agosto de 1992, cinco meses depois dos Estados Unidos, mas às mãos de um adolescente nos Açores? Talvez tenha aparecido lá para 1994 – e sabe-se lá porque portas e travessas.

[o trailer de “Instinto Fatal”:]

Se o melhor da festa é esperar por ela, não houve década mais festiva do que os anos 90. Havia uma desproporção entre produto e entrega. O showbiz e a comunicação já eram quase tão grandes como hoje, mas a distribuição permanecia raquítica. Esperávamos pela estreia mundial de um filme, depois pela estreia em Portugal, depois pela estreia na região periférica em que vivêssemos – admitindo que ela aconteceria – ou pela chegada do filme ao videoclube. Depois, ainda era preciso apanhá-lo nos escaparates (as coisas boas estavam sempre alugadas) e, conseguindo, que não estivesse já com a fita toda riscada pelos milhares de VCRs da cristandade por onde sabe Deus já tinha andado. Finalmente, no caso de um adolescente, era preciso esperar ainda que todos estes factores se conjugassem com uma tarde livre sem pais em casa, para ter o vídeo e a televisão da sala todos para ele (pois. Vale a pena lembrar que também não tínhamos dois ou três só para nós quase desde o berço).

Quando finalmente pus os olhos em “Instinto Fatal”, facultado em cópia VHS provavelmente por um amigo dum amigo do meu irmão mais velho (ah, a importância dos irmãos mais velhos para o acesso à, enfim, cultura dum miúdo do século XX), o dito era já um ícone. Um totem do erotismo. O objeto mítico proibido por excelência que com dificuldade se batia com o filme que, naquele longo entretanto, tínhamos já feito na nossa cabeça. Mas batia. Surpreendia. Tinha uma atmosfera de que, dificilmente, alguma vez poderíamos esquecer. Essa mistura de sexo e medo. O impulso básico e o complexo. O óbvio e o misterioso, impenetrável. O modo como Catherine Trammell escolhia mostrar tudo para garantir que ninguém via nada… No dia seguinte, enfim, a glória. De peito feito e já mais qualquer coisa homens e menos miúdos, chegávamos à escola e murmurávamos, em tom conspirativo, ao primeiro amigo: “Já vi…” Tinha passado tanto tempo que ele talvez tenha pensado que estávamos a falar do “Matrix”. Mas lá seguíamos, consolados, para a aula de Técnicas de Tradução de Inglês. Pelo sim, pelo não, não voltaríamos a tocar muito no assunto.

“Instinto Fatal” foi, indiscutivelmente, parte da educação sexual de uma geração. Copiado e recopiado de cassete para cassete, visto e revisto até se saber as cenas de cor. Foi o porta-estandarte de um movimento de aproximação do mainstream ao erotismo que, ciclicamente, se dá. Seguiram-se dezenas de imitações frouxas, paródias; anos mais tarde, a inevitável sequela. Sharon Stone tornou-se símbolo sexual, marca da provocação, perversão, transgressão, voluntária ou involuntariamente mais personagem do que a própria Trammell. Michael Douglas deu entrada em sucessivas clínicas de desintoxicação para viciados em sexo. E Hollywood, como alguém escrevia há dias, nunca mais correu tantos riscos. De certo modo, foi o fim de uma época – ou, nas imorredouras palavras de Nick Curran (Douglas) para Rocky (Leilani Sarelle), “de homem para homem”: “the fuck of the century”.

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