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Sessa foi a flor do real, Rodrigo Amarante tocou o que o público quis e a ondamarela encantou: retratos das últimas noites do Tremor

Este artigo tem mais de 2 anos

A incerteza do tempo como cenário perfeito para a tempestade musical que passou por São Miguel. Na despedida houve delícias brasileiras, punk de marrocos e a criatividade envolvente de músicos surdos.

Rodrigo Amarante foi capaz de levar o seu barco a bom porto, pôs o público do Coliseu Micaelense a bater com os pés nas tábuas de madeira, abraçando o músico carioca no seu aceno de despedida
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Rodrigo Amarante foi capaz de levar o seu barco a bom porto, pôs o público do Coliseu Micaelense a bater com os pés nas tábuas de madeira, abraçando o músico carioca no seu aceno de despedida

Vera Marmelo

Rodrigo Amarante foi capaz de levar o seu barco a bom porto, pôs o público do Coliseu Micaelense a bater com os pés nas tábuas de madeira, abraçando o músico carioca no seu aceno de despedida

Vera Marmelo

Os últimos dois dias do Tremor tiveram um convidado especial: o vento. Chamam-lhe mata-vacas por estes lados, de tal forma é agreste. Não cremos que tenha havido danos de maior a registar, tirando alguma cerveja a voar dos copos, cabelos desembestados e corpos tolhidos dentro dos casacos. Mas sejamos francos: tanto na noite de sexta, com um trio explosivo de DJs da editora ugandesa Nyege Nyege (que incêndio foi esse, Catu Diosis?) como no sábado, com Kebraku a mostrar em Ponta Delgada o porquê de ser tão mítico no Porto, a temperatura subiu a tal ponto que já ninguém queria saber do vento.

São vicissitudes de se fazer um festival numa ilha atlântica, que é pródiga em nos prendar com as quatro estações num dia. Nunca sabemos o que vamos encontrar e, de certo modo, essa incerteza casa bem com o próprio Tremor, que, qual intempérie criativa, é capaz de nos desarranjar por completo com uma simples atuação.

Quem foi à Igreja do Colégio na sexta-feira sabe bem do que estamos a falar. Ali fez-se culto, diante de um retábulo joanino lindíssimo, sob o olhar atento de Santa Bárbara, protetora contra as tempestades. Não é a primeira vez que a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM) se apresenta no festival, unida ao coletivo ondamarela, mas é a primeira vez que o faz ao lado do Coral de São José, o mais antigo do arquipélago. A união destas forças foi demolidora.

Kebraku mostrou em Ponta Delgada o porquê de ser tão mítico no Porto, a temperatura subiu a tal ponto que já ninguém queria saber do vento

Carlos Brum Melo

No mesmo local onde pregou o Padre António Vieira, o som ganhou textura pelas mãos dos músicos que, não o ouvindo, tocavam-lhe, sentiam-no a vibrar nos instrumentos; ganhou o cheiro das ondas do mar que saía pelas colunas, o gosto das fofas de Povoação, recheadas com creme de baunilha ou de limão. Contaram-se histórias dos locais, da mãe que foi de barco do Pico até São Miguel para curar a filha de uma surdez repentina, da filha que, partilhando o convés com outras crianças surdas, descobriu a linguagem gestual, “a minha identidade”, do senhor que ordenhava as vacas na alvorada, para levar o leite a quem trabalhava, “porque não havia leitarias”, da senhora que nunca teve tristezas, pois os seus filhos estavam todos criados.

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“Contas como quem oferece luz, como quem oferece sol. Conversas como quem dá, como quem cuida, como quem acende palavras”, ouvia-se em voz off. Quantas estórias e formas de contar presenciámos naquela hora? Quantos de nós éramos surdos e reaprendemos a escutar? “Cantem, cantem, cantem”, gritava o maestro com as mãos, impelindo o público a entregar-se àquela maré. Ele lá se deixou levar, “somos mar”, bravava o coro, corpos dançando freneticamente no centro da igreja até se fazer novamente um silêncio estrondoso. Um tremor instalou-se no peito e, tal como as palavras acesas na cabeça, demorou-se e permanece longamente em nós.

Um pouquinho de Brasil em São Miguel

Antes desse momento arrepiante, que deixou vários rostos em lágrimas, Jonathan Afonso protagonizava o último Tremor da Estufa do festival. O local escolhido foi o jardim do Palácio de Sant’Ana, sede do Governo Regional. De uma clareira verde emergiu a música encantatória deste filho açoriano, natural da ilha Terceira, que emprestou os seus dedos fugidios à guitarra portuguesa e à guitarra clássica. Delas ora saíram melodias leves, ora acordes rasgados com sabor a flamenco, antecipando um álbum que há de surgir em breve com o selo da Marca Pistola.

Também de guitarra na mão, Sessa apareceu no sábado, no Auditório Luís de Camões, para um dos grandes momentos do festival. Paulistano de nascença, não escondeu a alegria de tocar num país e numa cidade que lhe entendia as palavras. “No final das contas, todos nós só queremos ser compreendidos”, confessou na sua timidez, que não o largou durante toda a atuação.

Paulistano de nascença, Sessa não escondeu a alegria de tocar num país e numa cidade que lhe entendia as palavras.

Vera Marmelo

Em palco, com duas back vocals femininas e uma bateria que soube ser doce e ao mesmo tempo tempestuosa, sabendo ler o que a música lhe pedia, Sérgio Sayeg sentou-se num banco alto, cruzou as pernas e, com toda a sua sensibilidade e delicadeza, trouxe o Brasil dos filhos de Gandhi para o Tremor. Numa hora revisitou os temas do seu álbum de estreia, Grandeza (2019) e antecipou Estrela Acesa, o seu próximo trabalho. Ainda convocou Cartola, com o tema “Acontece”, a “Flor de Maracujá” de João Donato e, como se não bastasse, lembrou-nos João Gilberto no jeito sussurrado de cantar. “Como é que a vida faz tanta ferida / mas ainda faz você?” Tanto que Sessa nos deu e tanto que o Brasil ainda nos tem para dar.

Antes de entrarmos de cabeça em Rodrigo Amarante, fomo-nos perder em Taqbir. Bastaram vinte minutos para a banda marroquina, expatriada na Europa e incendiária no seu punk contra o conservadorismo religioso, nos dar umas bofetadas no corpo. Muitos entregaram-se ao moche e bem. O libertinismo quer-se servido assim, sem meiguice e cheio de garra e mossas nos ossos.

Bastaram vinte minutos para os Taqbir, expatriados na Europa e incendiários no seu punk contra o conservadorismo religioso, nos dar umas bofetadas no corpo (fotos de Vara Marmelo e Carlos Brum Melo)

Desarranjados quanto baste, apressámos o passo para o Coliseu Micaelense. Rodrigo apresentou-se sozinho, ele e a sua guitarra. Faltava a “coisinha” para começar o concerto, “tenho que ir lá atrás buscar”, desculpou-se. Referia-se ao transpositor. Uma vez posto no braço da guitarra, começou a desfiar os seus temas arpejados, meia dúzia de acordes, letras arrastadas com a voz a florear livremente. Cantou o seu samba valsinha em três por quarto, “o maior pecado da música brasileira”. Murmurou, assobiou, embalou o público com onomatopeias e o público aplaudiu-o entusiasticamente.

Mas foi com “aquela” que o Coliseu mais vibrou. “Ontem à noite me veio uma figura e falou, então vai tocar aquela?”, contou Amarante antes de lançar os versos, “soy el fuego que arde tu piel / soy el agua que mata tu sed”. Falava, claro, do tema da série “Narcos”, “Tuyo”, o que mais telemóveis fez erguer na plateia. Aproveitando a cadência, deu-nos “Tardei”, “The Ribbon”, uma passagem pelo piano, antes da consagração final.

Rodrigo Amarante cantou o seu samba valsinha em três por quarto, "o maior pecado da música brasileira”

INÊS SUBTIL

Rodrigo Amarante foi capaz de levar o seu barco a bom porto, pôs o público do Coliseu Micaelense a bater com os pés nas tábuas de madeira, abraçando o músico carioca no seu aceno de despedida. Ainda assim, a sala que o endeusou, foi a mesma que não conteve o constante burburinho que poluiu o ar. Houve até quem tivesse lançado um “shiuuuu” sonoro, reclamando pelo silêncio devido. Talvez faltasse algum corpo a Amarante para que isso tivesse acontecido. Assim, sozinho, foi tudo bonitinho, tudo lapidado, mas algo débil. Pouco importa, contudo. Estava feita uma das maiores ovações do festival e isso é o que fica para a história.

De saudar ainda o canto polifónico de Lyra Pramuk, clássico, gregoriano e simultaneamente futurista, uma performance imersiva envolta em muito fumo de palco; e para o momento em que a banda da Escola de Música de Rabo de Peixe se apresentou com Rodrigo Amado e Peter Evans na Igreja do Colégio, resultado da residência artística que Amado apelidou de “projeto super especial”.

A nona edição do Tremor despede-se assim, deixando saudade nas cerca de 1.500 pessoas que lá estiveram e reescrevendo a narrativa deste território que, quanto mais penetramos e conhecemos, mais rico se mostra. Partimos rumo ao Continente na esperança de regressar para o ano. Talvez encontremos Conceição Ivo, de Espírito Santo ao peito, a dançar junto de nós.

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