Os últimos dois dias do Tremor tiveram um convidado especial: o vento. Chamam-lhe mata-vacas por estes lados, de tal forma é agreste. Não cremos que tenha havido danos de maior a registar, tirando alguma cerveja a voar dos copos, cabelos desembestados e corpos tolhidos dentro dos casacos. Mas sejamos francos: tanto na noite de sexta, com um trio explosivo de DJs da editora ugandesa Nyege Nyege (que incêndio foi esse, Catu Diosis?) como no sábado, com Kebraku a mostrar em Ponta Delgada o porquê de ser tão mítico no Porto, a temperatura subiu a tal ponto que já ninguém queria saber do vento.
São vicissitudes de se fazer um festival numa ilha atlântica, que é pródiga em nos prendar com as quatro estações num dia. Nunca sabemos o que vamos encontrar e, de certo modo, essa incerteza casa bem com o próprio Tremor, que, qual intempérie criativa, é capaz de nos desarranjar por completo com uma simples atuação.
Quem foi à Igreja do Colégio na sexta-feira sabe bem do que estamos a falar. Ali fez-se culto, diante de um retábulo joanino lindíssimo, sob o olhar atento de Santa Bárbara, protetora contra as tempestades. Não é a primeira vez que a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM) se apresenta no festival, unida ao coletivo ondamarela, mas é a primeira vez que o faz ao lado do Coral de São José, o mais antigo do arquipélago. A união destas forças foi demolidora.
No mesmo local onde pregou o Padre António Vieira, o som ganhou textura pelas mãos dos músicos que, não o ouvindo, tocavam-lhe, sentiam-no a vibrar nos instrumentos; ganhou o cheiro das ondas do mar que saía pelas colunas, o gosto das fofas de Povoação, recheadas com creme de baunilha ou de limão. Contaram-se histórias dos locais, da mãe que foi de barco do Pico até São Miguel para curar a filha de uma surdez repentina, da filha que, partilhando o convés com outras crianças surdas, descobriu a linguagem gestual, “a minha identidade”, do senhor que ordenhava as vacas na alvorada, para levar o leite a quem trabalhava, “porque não havia leitarias”, da senhora que nunca teve tristezas, pois os seus filhos estavam todos criados.
“Contas como quem oferece luz, como quem oferece sol. Conversas como quem dá, como quem cuida, como quem acende palavras”, ouvia-se em voz off. Quantas estórias e formas de contar presenciámos naquela hora? Quantos de nós éramos surdos e reaprendemos a escutar? “Cantem, cantem, cantem”, gritava o maestro com as mãos, impelindo o público a entregar-se àquela maré. Ele lá se deixou levar, “somos mar”, bravava o coro, corpos dançando freneticamente no centro da igreja até se fazer novamente um silêncio estrondoso. Um tremor instalou-se no peito e, tal como as palavras acesas na cabeça, demorou-se e permanece longamente em nós.
Um pouquinho de Brasil em São Miguel
Antes desse momento arrepiante, que deixou vários rostos em lágrimas, Jonathan Afonso protagonizava o último Tremor da Estufa do festival. O local escolhido foi o jardim do Palácio de Sant’Ana, sede do Governo Regional. De uma clareira verde emergiu a música encantatória deste filho açoriano, natural da ilha Terceira, que emprestou os seus dedos fugidios à guitarra portuguesa e à guitarra clássica. Delas ora saíram melodias leves, ora acordes rasgados com sabor a flamenco, antecipando um álbum que há de surgir em breve com o selo da Marca Pistola.
Também de guitarra na mão, Sessa apareceu no sábado, no Auditório Luís de Camões, para um dos grandes momentos do festival. Paulistano de nascença, não escondeu a alegria de tocar num país e numa cidade que lhe entendia as palavras. “No final das contas, todos nós só queremos ser compreendidos”, confessou na sua timidez, que não o largou durante toda a atuação.
Em palco, com duas back vocals femininas e uma bateria que soube ser doce e ao mesmo tempo tempestuosa, sabendo ler o que a música lhe pedia, Sérgio Sayeg sentou-se num banco alto, cruzou as pernas e, com toda a sua sensibilidade e delicadeza, trouxe o Brasil dos filhos de Gandhi para o Tremor. Numa hora revisitou os temas do seu álbum de estreia, Grandeza (2019) e antecipou Estrela Acesa, o seu próximo trabalho. Ainda convocou Cartola, com o tema “Acontece”, a “Flor de Maracujá” de João Donato e, como se não bastasse, lembrou-nos João Gilberto no jeito sussurrado de cantar. “Como é que a vida faz tanta ferida / mas ainda faz você?” Tanto que Sessa nos deu e tanto que o Brasil ainda nos tem para dar.
Antes de entrarmos de cabeça em Rodrigo Amarante, fomo-nos perder em Taqbir. Bastaram vinte minutos para a banda marroquina, expatriada na Europa e incendiária no seu punk contra o conservadorismo religioso, nos dar umas bofetadas no corpo. Muitos entregaram-se ao moche e bem. O libertinismo quer-se servido assim, sem meiguice e cheio de garra e mossas nos ossos.
Desarranjados quanto baste, apressámos o passo para o Coliseu Micaelense. Rodrigo apresentou-se sozinho, ele e a sua guitarra. Faltava a “coisinha” para começar o concerto, “tenho que ir lá atrás buscar”, desculpou-se. Referia-se ao transpositor. Uma vez posto no braço da guitarra, começou a desfiar os seus temas arpejados, meia dúzia de acordes, letras arrastadas com a voz a florear livremente. Cantou o seu samba valsinha em três por quarto, “o maior pecado da música brasileira”. Murmurou, assobiou, embalou o público com onomatopeias e o público aplaudiu-o entusiasticamente.
Mas foi com “aquela” que o Coliseu mais vibrou. “Ontem à noite me veio uma figura e falou, então vai tocar aquela?”, contou Amarante antes de lançar os versos, “soy el fuego que arde tu piel / soy el agua que mata tu sed”. Falava, claro, do tema da série “Narcos”, “Tuyo”, o que mais telemóveis fez erguer na plateia. Aproveitando a cadência, deu-nos “Tardei”, “The Ribbon”, uma passagem pelo piano, antes da consagração final.
Rodrigo Amarante foi capaz de levar o seu barco a bom porto, pôs o público do Coliseu Micaelense a bater com os pés nas tábuas de madeira, abraçando o músico carioca no seu aceno de despedida. Ainda assim, a sala que o endeusou, foi a mesma que não conteve o constante burburinho que poluiu o ar. Houve até quem tivesse lançado um “shiuuuu” sonoro, reclamando pelo silêncio devido. Talvez faltasse algum corpo a Amarante para que isso tivesse acontecido. Assim, sozinho, foi tudo bonitinho, tudo lapidado, mas algo débil. Pouco importa, contudo. Estava feita uma das maiores ovações do festival e isso é o que fica para a história.
De saudar ainda o canto polifónico de Lyra Pramuk, clássico, gregoriano e simultaneamente futurista, uma performance imersiva envolta em muito fumo de palco; e para o momento em que a banda da Escola de Música de Rabo de Peixe se apresentou com Rodrigo Amado e Peter Evans na Igreja do Colégio, resultado da residência artística que Amado apelidou de “projeto super especial”.
A nona edição do Tremor despede-se assim, deixando saudade nas cerca de 1.500 pessoas que lá estiveram e reescrevendo a narrativa deste território que, quanto mais penetramos e conhecemos, mais rico se mostra. Partimos rumo ao Continente na esperança de regressar para o ano. Talvez encontremos Conceição Ivo, de Espírito Santo ao peito, a dançar junto de nós.