É possível que o mundo aprecie mais a figura do charlatão do que gosta de admitir. E na era do virtue signaling, em que estamos de sobreaviso quase 24 horas por dia e nos esforçamos por manter a fachada de pessoas impolutas, se há coisa que não admitimos é defeitos: clamamos publicamente a nossa honestidade, estamos por todas as coisas certas e contra todas as coisas erradas, seríamos incapazes de poluir, dizer uma piada pouco inclusiva, mentir para nos safarmos. Fomos ensinados desde pequeninos a fazer boa figura em público e nunca como hoje levámos tão ao extremo esse preceito, como se vivêssemos eternamente no dia da primeira comunhão: rosto contrito, vincos marcados nas calças, camisa passada, uma flor na mão e em cada palavra.

Mas corpos lindos também escondem intestinos e em privado não só não somos perfeitos como fantasiamos com o proibido, flirtamos com o desvio, admiramos o abismo. É aqui que a figura do charlatão surge – aqui ou, para usar um imagem clássica, às três da manhã, quando (ligeiramente ébrio) avança (ligeiramente trôpego) até junto de uma donzela e o que lhe diz ao ouvido nós, os não-charlatões, não sabemos, mas é com ele que ela vai para casa. Não que ela acredite por completo nele – simplesmente há quem possua o dom da palavra, carisma, e por vezes precisamos de acreditar em alguma coisa, numa tanga qualquer, desde que seja boa tanga.

Uma boa parte da pop resume-se a afirmação de identidade. Algumas identidades são claras: Beyoncé é uma mulher que está no controlo do seu destino; Jay-Z (para nos ficarmos por só por pessoas que se conhecem vagamente) é o manda-chuva. Outras (como Kanye West), sempre foram mais conturbadas ou (como Prince) mais complexas. A figura de Father John Misty vive, há muitos anos, nas múltiplas variações do charlatão.

[Kiss Me (I Loved You)”:]

Inicialmente, ele era uma espécie de Gram Parsons da era da quinoa, de cowboy urbano propenso a beber e a tomar substâncias tóxicas que o tornavam na pessoa menos provável de chegar a horas ao batizado do sobrinho de banho tomado, o que automaticamente lhe conferia o estatuto de rapaz que precisa de ser salvo.

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Lentamente, Misty desdobrou a personagem em várias: adicionou gravitas fingindo ser o clown que só era clown devido à sua dificuldade em assumir os seus sentimentos, dificuldade essa que o levava a pecar; confessou o trauma que a sua infância ultra-religiosa à mão de pais conservadores lhe causou (e que, como sabemos, o levou ao álcool, às drogas e ao pecado); e, por fim, nos últimos anos, parece ter iniciado uma Transformação Pública de Ex-Pecador em Processo de Redenção.

Esta figura – que bebe e mete drogas e trai e é inconfiável, mas que no fundo é boa pessoa e só precisa de amor e se calhar não é nada disso, se calhar é só teatro ou então, só para complicar, inicialmente era teatro e a dada altura perdeu-se na sua própria personagem – existe há muito: na sua faceta mais pura (como nos casos de Gram Parsons ou Townes van Zandt) damos com pessoas com um sofrimento inaudito, confirmado pelas suas biografias, que a espaços (ou na maior parte do tempo) tinham comportamentos humanos reprováveis e usavam o álcool e as drogas como fuga à auto-análise mas também à ansiedade e à depressão (não resultou).

[“Goobye Mr. Blue”:]

Tom Waits, como saberá quem leu Lowside of the Road, a biografia não-autorizada e escrita por Barney Hoskins, é mais difícil de discernir: abandonado pelo pai em tenra idade, Waits andou uma vida à procura de uma figura paterna, o que para ele significava beber, ser promíscuo, fumar muito, ter voz grossa. A sua produção musical dos primeiros anos – como se de um crooner de Vegas caído em desgraça se tratasse, um crooner que já só cantasse sobre vagabundos e lhes quisesse atribuir a grandeza que o mundo real se negava a conceder – era ultra-romântica até à caricatura, e não é de pôr de parte que a dado momento a vida pessoal de Waits se tenha tornado na caricatura da sua persona artística – já de si uma caricatura, numa sobreposição de máscaras pouco saudável.

Waits casou com Kathleen Brennan, fugiu de Los Angeles e das ruas e ao assentar, curiosamente, a sua produção musical conheceu uma libertação, tornou-se mais arriscada e variada e Waits pareceu então controlar melhor a sua personagem – e esse controlo serviu-lhe para distinguir entre o tipo que sobe a um palco e aquele outro que chega a casa e tem três fraldas para tocar.

A evocação de Waits não é um acaso, porque Chlöe and the Next 20th Century, o mais recente álbum de Father John Misty, soa várias vezes ao Tom Waits dos primeiros discos: um crooner de voz sofrida que canta maleitas de amor e as pequenas desgraçadas rodeado de cordas cuja grandeza é inversamente proporcional à pequenez das histórias.

[“Q4”:]

Pode parecer uma surpresa, mas o trajeto de Misty já encaminhava para estas paragens: se Misty começou como homem da folk que cantava o que lhe ia lá dentro, e se munia, sobretudo, de uma guitarra, ao longo dos discos a sua voz foi adquirindo um tom de crooner, a sua persona foi-se tornando mais fiteira, como o poeta que é tão fingidor que finge ser dor a dor que deveras sente.

E o crooning é o meio perfeito para essa nobre atividade: com a sua propensão para a desgraça amorosa, para a entrega excessiva das palavras, com a luxúria das suas cordas, o crooner transporta-nos para um mundo em que não há guerras nem fome nem quezílias com os vizinhos acerca do cão comer as plantas, só existo eu e tu, baby, e tu queres-me, que eu sei, e eu não sei viver sem ti, vem jantar comigo que eu sou bom ouvinte (e no fim peço fatura com contribuinte).

É preciso tirar o chapéu a Misty, porque logo à primeira canção, “Chlöe”, ele candidata-se a surgir na banda-sonora de um filme de Woody Allen, com trompete em surdina, as escovas, a melodia delicada ao piano (dobrada em órgão lounge), os sopros, o xilofone, as cordas e toda uma profusão de instrumentos que, caso o booklet do disco os enumere a todos em cada canção, a Amazónia sofrerá.

[“Funny Girl”:]

Chlöe and the Next 20th Century não é sempre tão declaradamente cabaré, mas o cabaré cabe bem a Misty – se bem, que logo à segunda canção, fique claro que o seu universo de eleição é o que está mais próximo da música de raiz americana: “Goodbye Mr Blue” podia muito bem ser uma canção de Townes van Zandt, com um dedilhado delicado e uma lindíssima slide-guitar que lhe confere contornos etéreos. Estes são os dois polos mais extremados de Chlöe and the Next 20th Century e o resto do disco decorre entre estes extremos.

“Kiss Me”, a abordagem de Misty à canção de amor clássica americana (tal como foi cristalizada musicalmente por Randy Newman, mas apenas musicalmente, que em termos de palavras Newman é demasiado sarcástico para a maior parte dos palatos) irá certamente dar cabo de uns corações; pelo mesmo caminho vai “Funny Girl”, que é mais Judy Garland do que Garland alguma vez foi, enquanto “Buddy’s Rendezvous” é Tom Waits do início chapado e a pedir processo por plágio.

[ouça “Chlöe and the Next 20th Century” na íntegra através do Spotify:]

Ocasionalmente, Misty pousa o mel ou, pelo menos, agita-o: “Q4” podia ser ser uma canção dos Divine Comedy; “Only a fool” volta a ter um travo country; Olvidado, pese embora as cordas, tem um balanço quase bossa. Mas o travo distintivo de Chlöe and the Next 20th Century é que tanto pode ser ouvido junto à piscina, na companhia de Daiquiris, como no elevador e no bar do hotel – ou até mesmo no quarto, sozinhos, abandonados, com pena de nós próprios, forever alone.

Tenho uma teoria sobre Father John Misty: ele nunca fez um disco perfeito do princípio ao fim, mas também não sabe fazer um mau disco – tem demasiada pinta para isso, demasiada lata e é a lata que o torna convincente seja qual for o papel que assuma. No caso, e como diria Barney Stinson, “suit up”.