Em 1933, o poeta irlandês W.B Yeats escreveu, no poema “Before the World Was Made”, o verso “I’m looking for the face I had /Before the world was made“, que podemos traduzir como “Estou à procura do rosto que eu tinha/ antes de o mundo existir”. É talvez essa constante e impossível busca de si mesmo que podemos encontrar nos mais de 40 autorretratos que o pintor e gravurista holandês Rembrandt criou entre os 20 e os 63 anos, idade com que morreu.
Embora no século XVII o autorretrato não estivesse na moda, a constância com que Rembrandt se aplicou a fazê-los não pode ser reduzida a um gesto de egótico, mas afirma-se mais como uma espécie de autobiografia em retrato, como afirma o ensaísta de arte H.W Janson. Este autor explica que o artista parecia pintar autorretratos sempre que havia qualquer acontecimento que lhe provocava uma convulsão, uma mudança interior, porque todos os quadros e gravuras onde retratou a sua face são muito diferentes entre si. Apenas uma coisa permanece: o olhar frontal que parece sair do quadro e interpelar diretamente o espectador, deixando no ar as questões “estou a ver-vos ou estou a ser visto?”, “Sou o modelo ou o espectador?”, “onde está o real? Aqui dentro do quadro ou aí fora onde vocês me observam?”.
Esta criação do “lugar do espectador” assume-se como uma das características de muitos pintores barrocos, obviamente, com Velazquez à cabeça. Como escreveu Michel Foucault, estes quadros, em que o artista aparece retratado como que a olhar para fora do espaço da tela para se fixar num invisível espectador, mostram que a arte é sempre uma relação de reciprocidade entre o contemplador e o contemplado. Os jogos de luz e sombra, ou o chamado chiaroscuro, vão adensar a criação de linhas de fuga que partem do quadro e se dirigem ao invisível (que é todo o mundo que se estende para lá dos limites da tela).
Há, pois, muito a descobrir nos olhos e na linguagem pictórica deste autorretrato de Rembrandt van Rijn, que pode ser visto no museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A obra é um empréstimo do museu madrileno Thyssen-Bornemisza, uma das preciosidades da coleção que raramente atravessa as fronteiras espanholas e que agora vai estar em diálogo com outras duas obras de Rembrandt adquiridas por Calouste e que em geral nos esquecemos que estão tão próximas: “Palas Athena” (uma representação da deusa grega, de 1657, e o comovente “Figura de Velho”, de 1645.
A tela do mestre absoluto do chamado Século de Ouro Holandês pode ser vista até 12 de setembro na Galeria de Pintura do século XVII do Museu Gulbenkian. O novo diretor do Museu, António Filipe Pimentel, explicou à imprensa que a vinda deste quadro se insere numa “numa lógica de parceria entre instituições museológicas e coleções, vai ter uma regularidade de apresentação de três obras por ano, que ficarão no museu durante cerca de três meses”.
É pois uma oportunidade única para conhecer melhor este artista que teve uma forte ligação à comunidade de judeus portugueses de Amesterdão, que foi amigo intimo de Menasseh Ben Israel, o famoso rabino e editor de ascendência portuguesa, mas também terá conhecido o polémico filósofo Uriel Da Costa e o não menos polémico Bento de Espinoza.
É ainda o pintor de eleição de Agustina Bessa-Luís que usa pelo menos dois dos seus quadros como inspiração para dois livros: A Ronda da Noite (1639-1642), a mais controversa obra de Rembrandt, que dará titulo ao ultimo romance da escritora portuguesa e Filosofo em Meditação (1632) a partir do qual ela especula, naquela sua maneira tão própria de saber o quão ténues podem ser as fronteiras entre o real e a ficção, se esta imagem não seria um retrato do filósofo judeu português Uriel da Costa e da sua criada Ancilla, sobre o qual ela escreve na biografia romanceada Um Bicho da Terra.
A vida genial e desventurada do artista que procurou conhecer-se a si mesmo
“Conhece-te a ti mesmo” foi a intemporal demanda de Sócrates que o pintor nascido em Leyden, Países Baixos, cedo adotou para si mesmo e que atravessou toda a sua obra e toda a sua vida. Os autorretratos, a escrita de um diário, o seu conhecimento e fascínio pela mitologia grega e latina e pelo Antigo Testamento, mostram uma busca constante pelo conhecimento e o auto-conhecimento.
É provável que esse fascínio lhe tenha ficado da instrução num colégio de Latim, onde os pais, humildes moleiros, o colocaram na infância. Precoce em tudo, entrou para a universidade com apenas 14 anos, para estudar letras. Porém, o apelo das artes plásticas foi mais forte e ao fim de um ano deixa a universidade para se fazer aprendiz de um famoso pintor de Leyden, onde também trabalhavam outros jovens que vieram a integrar o século de ouro da pintura holandesa. Parte depois para Amesterdão para ser aprendiz de outro artista, embora as suas influências já estivessem bastante impressas na sua abordagem: Caravaggio na pintura e Albrecht Dürer na gravura.
Ao mestre do Barroco italiano vai buscar o jogo claro/escuro e os esfumados, embora depois os use de uma forma muito própria e, com a passagem dos anos, essa dicotomia vai mesmo tender a esbater-se. A luz deixa de ocupar o ponto central da tela para iluminar os rostos para que neles se projetasse o mundo interior.
Rembrandt acaba por se tornar protegido de um rico marchant de Amesterdão, Maurice Huyghens, e muda-se para esta cidade que, à época, era a capital do império holandês. O país, apesar de ser um estado calvinista, gozava de uma grande liberdade religiosa, o que, juntamente com a nova riqueza conquistada no império, atraía para ali artistas, cientistas, eruditos, banqueiros, gente da alta burguesia de toda a Europa. Amesterdão sucedia a Lisboa como a capital do mundo moderno, com a inteligência de ter sabido aproveitar a fuga em massa dos judeus expulsos de Portugal por D. Manuel I, que com eles levaram muito dinheiro e os vários negócios lucrativos que geriam, como o açúcar, os escravos, as especiarias.
Essa prosperidade deu muito trabalho aos artistas como Rembrandt, que se especializou em fazer retratos quer individuais, quer de grupos profissionais, onde cada um pagava uma quantia para aparecer no quadro. Contudo, este jovem além de genial tinha uma espírito fantasioso e uma vontade de experimentar que lhe durou a vida toda, o que nem sempre agradava aos retratados que não se queriam ver imortalizados com as roupas ou adereços orientalizantes e levantinos que o pintor colecionava, ou os seus rostos perdidos nas sombras lúgubres que eram uma das suas marcas. A sua juventude temerária, o dinheiro que lhe chegava, a fama, criaram-lhe muitos admiradores, mas também muitos detratores.
Tem apenas 26 anos quando pinta uma das sua primeiras obras primas, “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”, ou o famoso medico holandês Dr. Tulp a realizar uma autopsia ao cadáver de um condenado à forca. Para lá dos autorretratos esta é uma das obras onde o pintor claramente volta ao lema socrático “conhece-te a ti mesmo”. O que que é uma autopsia (do grego: ver com os próprios olhos) senão uma forma de auto-conhecimento? O quadro foi uma encomenda da guilda de cirurgiões de Amesterdão, mas acaba por se tornar um hino pictórico à ciência e ao progresso cientifico.
Além dos jogos de luz e cor, as suas representações eram ricamente pormenorizadas, dos rostos aos mínimos gestos e mais ínfimos objetos ou detalhes da roupa, tudo lhe merece uma atenção delicada e tudo conflui para um mundo onde um hiper-realismo se funde com uma toada mística e psicologizante. Rembrandt vai ser também reconhecido como gravurista na técnica de “Água Forte” e alguns dos seus autorretratos são mesmo feitos com esta técnica.
Já na pintura o artista usava grandes quantidades de tintas e óleos para criar texturas únicas, relevos especialmente nas partes da obra que ficavam na obscuridade. Quando não pintava por encomenda, (só retratos terá pintado 415), Rembrant pintava sobretudo cenas mitológicas, como a figura de Palas Athena da coleção Gulbenkian ou cenas do antigo testamento ou Bíblia hebraica. Em 1934, casa com Saskia, a sobrinha de Maurice Huyghens, uma relação breve que vai dominar a sua obra durante os anos em que durou o casamento. Rembrandt fará dezenas de retratos da mulher, desde os seu esplendor nubil até à sua doença e morte prematura com apenas 30 anos. Nesse período morreram também três dos filhos do casal e só um sobreviverá.
Quando casa com Saskia, Rembrandt, muda-se para uma casa sumptuosa no bairro judeu, o que, a juntar à sua atração pelo Antigo Testamento, tem levado muitos historiadores a ponderar se o pintor não se teria mesmo convertido ao judaísmo. Como escreve H.W. Janson, “poucos terão sabido representar a violência e o esplendor desse mundo oriental, tão cruel e sedutor do Antigo Testamento”.
A morte de Saskia, a sua incapacidade em gerir as suas finanças e o o seu modo de ser conflituoso acabaram por levá-lo à falência, a perder clientes e por fim a ser ostracizado pela comunidade. Terá ainda uma filha fruto de um caso com uma das suas modelos, mas também esta morrerá cedo.
O quadro A Ronda da Noite marca a sua cisão com a comunidade de artistas e clientes ricos. A pintura, uma tela de tamanho descomunal, fora uma encomenda de uma companhia militar, onde cada membro pagou para ser retratado. Ora, e apesar disso, Rembrandt quis fazer o quadro segundo as suas regras e muitos dos que se viram ficar nas sombras ou na escuridão da noite Rembrandtiana terão ficado furiosos. Apesar disso, o artista continuou a pintar e continuou a beneficiar de muitos apoios em especial da comunidade de judeus portugueses.
Lentamente, foi abandonando a linguagem barroca estrita e criou uma nova amplitude pictórica onde os sentimentos ganharam um papel central. As telas ganham uma luz dourada e silenciosa. Deixou de pintar burgueses ricos adornados com peças orientais e passou a olhar compassivamente para os pobres e os escorraçados. Os seus últimos quadros representam homens descalços e esfarrapados, como O Regresso do Filho Pródigo ou Cristo Pregando.
Quando morre, em 1669, com 63 anos, encontra-se na maior pobreza, é enterrado numa campa rasa em parte incerta. Ironicamente, hoje porém, a sua obra é transportada pelo mundo com mil e um cuidados pagos a peso de ouro.
A próxima obra a visitar o museu Gulbenkian será uma tapeçaria da armação “Jogos de Criança”, do século XVI, de Giulio Romano, proveniente do Museo Poldi Pezzoli, em Milão, na Itália. A Gulbenkian detém igualmente “A Pesca”, uma das quatro tapeçarias desta armação fabricada numa oficina em Mântua, sobre os cartões do pintor e arquiteto renascentista. Segundo informação do museu, esta ‘secção’ foi adquirida pelo colecionador Calouste Gulbenkian, em 1920.