O violinista italiano Alessio Bidoli descobriu a música de Luís de Freitas Branco através das sinfonias, que encontrou por acaso numa loja de discos, em Itália, e elegeu o compositor português para o seu novo disco em nome próprio.

“De imediato, fiquei agradavelmente surpreendido com a sinceridade da sua música”, contou Alessio Bidoli à agência Lusa, numa entrevista feita por correio eletrónico, a propósito da edição do seu novo álbum, “Freitas Branco — Complete Violin Sonatas and Piano Trio”, que reúne, pela primeira vez, toda a obra do compositor de “Vathek” para conjuntos de câmara com violino: as Sonatas n.º 1 e n.º2, para violino e piano, compostas em 1908 e 1928, respetivamente, o Trio para violoncelo e piano, de 1908, e o esquecido Prelúdio, de 1910, “praticamente inédito”.

Editado no final de abril, o álbum encontra-se agora disponível nas plataformas de ‘streaming’ e, além de Bidoli, nascido em Milão em 1986, o projeto reúne os veteranos Alain Meunier, violoncelista francês conhecido por interpretações de Johann Sebastian Bach, Maurice Ohana e Paul Hindemith, e o pianista italiano Bruno Canino, nome destacado das salas de concerto e do antigo Trio de Milão, que atuou recentemente em Portugal no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e na Semana Internacional de Piano de Óbidos.

Para Alessio Bidoli, que gostaria de vir a interpretar o Concerto para violino e orquestra de Freitas Branco, a descoberta do compositor português foi um acaso e uma revelação, ao ponto de se sentir “muito culpado” por não o ter conhecido antes.

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Bidoli começou pela obra orquestral mais tardia de Luís de Freitas Branco (1890-1955) e acabou por gravar algumas das principais peças da obra de câmara mais precoce. As quatro sinfonias vêm da maturidade. A primeira data de 1924, quando o compositor atingia os 34 anos, a derradeira, a quarta, foi concluída em 1952, a três anos da morte.

Freitas Branco surgiu no caminho de Bidoli numa altura em que procurava obras de música de câmara, com violino, que pudessem dar continuidade à sua discografia em nome próprio, depois de ter gravado Giuseppe Verdi e Nino Rota.

A partir das sinfonias, chegou à editora portuguesa AVA, através do qual obteve as partituras das obras de Freitas Branco que correspondiam à sua vontade: as duas Sonatas, o Trio e o pequeno Prelúdio.

“Só então percebi que a 1.ª Sonata, o Trio e o próprio Prelúdio tinham sido escritos pelo compositor quando ainda não tinha 20 anos!”, disse Alessio Bidoli, assegurando que pôs logo de parte qualquer dúvida quanto a estas peças, para o seu novo projeto. “Não pensei duas vezes”.

“No que diz respeito à Sonata, fiquei desde logo impressionado com a expressão de intimidade dos seus elementos estéticos, numa certa afinidade com a sonata cíclica de César Franck”, afirmou, numa referência à elaboração temática, ao longo de toda a obra, lembrando a sofisticação do compositor belga.

“Quanto ao Trio, fiquei intrigado com [o trabalho de] pesquisa sobre o timbre, o caráter eclético e fantasmagórico das melodias”, de inspiração tradicional, “que recordam um mundo popular português, talvez mesmo exótico”.

Tanto o Trio como a 1.ª Sonata datam de 1908 — Freitas Branco fazia 18 anos, e estudava com Désiré Pâque, compositor belga então radicado em Lisboa –, o Prelúdio vem dos seus 20 anos. Tinha 38, quando completou a última sonata para violino e piano.

“A 2.ª Sonata é, de certa forma, bastante diferente das outras três composições. É uma obra de inspiração mais neoclássica, apresenta justaposições de temas ‘neomodais'”, disse Alessio Bidoli à Lusa, numa referência a modelos de composição, afirmados em pleno século XX, que renovam a importância atribuída ao caráter dos intervalos (dado pela ‘distância’ entre as notas), nas diferentes escalas, em termos de composição melódica e dos seus ‘alicerces’.

A obra, porém, “é de igual delicadeza de tom”, prosseguiu o violinista, citando o musicólogo Franco Pulcini, autor do texto que acompanha o seu álbum.

Vinte anos passados sobre a primeira sonata, encontra-se nesta “um estilo mais atual, ainda orientado para a música francesa”, estabelecendo-se, neste momento e nesta obra, em Luís de Freitas Branco, “uma espécie de passagem” entre o prenúncio de um novo século, que passou por César Franck (1822-1890), e a afirmação da modernidade de Maurice Ravel (1875-1937).

Na discografia do violinista, a escolha de Luís de Freitas Branco prende-se mais ao seu constante “objetivo de encontrar peças musicais pouco conhecidas, que tenham caracterizado um certo período histórico ou uma certa forma de interpretar música”, do que a estabelecer pontes entre o século XIX de Verdi e o século XX de Nino Rota.

“As transposições instrumentais que se podem ouvir no CD ‘Fantasias’, de Verdi [edição Concerto, 2019]”, vindas de óperas como “La Traviata” e “Il Trovatore”, celebrizadas na época por violinistas como Antonio Bazzini e Camilo Sivori, que Bidoli resgatou para o programa, constituem “verdadeiros desafios entre virtuosos”, recorda.

Eram “uma espécie de ‘duelos de arco’, realizados em sessões privadas nos palácios, ou em teatros públicos, desde o início do século XIX, e não têm afinidade com a obra de Freitas Branco”.

Quanto à música de câmara de Nino Rota, que gravou no álbum seguinte (Decca, 2020), provém da consulta que fez ao espólio do compositor na Fundação Cini, em Veneza, reunindo peças que vão dos anos de 1930 ao final da década de 1960.

Mais uma vez, música “pouco conhecida do público em geral, que identifica [Rota] sobretudo pelas famosas bandas sonoras compostas para grandes filmes”, como os de Federico Fellini, e menos pelas suas páginas de música de câmara.

Alessio Bidoli nasceu numa família da Lombardia, construtora de violinos há gerações, e o seu próprio violino foi construído pelo avô.

Formado no Conservatório Giuseppe Verdi, em Milão, Bidoli começou a tocar aos 7 anos, e percorreu depois as principais escolas europeias, como o Conservatório de Lausanne, onde estudou com Pierre Amoyal, o Mozarteum, em Salzburg, a Accademia Chigiana, em Siena, e a Imola International Academy. É professor no Conservatório de Bari.

Dos compositores portugueses, cita também Fernando Lopes-Graça — um dos mais destacados alunos na longa carreira docente de Luís de Freitas Branco — de quem apreciou “algumas melodias tradicionais portuguesas”.

Quanto ao Concerto para violino de Freitas Branco, que o compositor concluiu em 1916, para Alessio Bidoli a possibilidade de o interpretar seria “maravilhosa”. Assim como conhecer Portugal, que ainda não visitou.

“Freitas Branco – Complete Violin Sonatas and Piano Trio” (Sony Classical) junta-se às gravações das Sonatas por Tibor Varga e Roberto Szidon (PortugalSom, 1987), e por Carlos Damas e Anna Tomasik (Naxos, 2011), edição que também inclui o Prelúdio de 1910.

O Trio de Luís de Freitas Branco encontra-se gravado pelo Trio Pangea (Naxos, 2019), com os trios de Joly Braga Santos e de Alexandre Delgado, numa linha direta de professores e discípulos, entre compositores portugueses do último século.