Vão à procura de respostas, sem ideias pré-concebidas, garantem, mas conscientes de em Portugal há “especificidades” em matéria de jogo. Sobretudo quando falamos de raspadinhas. Pedro Morgado e Luís Aguiar-Conraria são os investigadores da Universidade do Minho que lideram a equipa que, ao longo dos próximos meses, vai dedicar-se a um estudo pedido pelo Conselho Económico e Social (CES), e que pretende perceber se existe, de facto, entre os portugueses, uma patologia relacionada com estes jogos instantâneos.

“Nós partimos para o estudo à procura de respostas, mas partimos a partir da realidade que existe, que é a de que em Portugal, o consumo deste jogo é muito superior à realidade dos países comparáveis, o que indicia que podem existir especificidades no fenómeno em Portugal, e indicia que haverá mais pessoas com problemas associados ao consumo deste jogo”, diz Pedro Morgado ao Observador.

Em 2018, os portugueses gastaram cerca de 1,6 mil milhões de euros em raspadinhas, o que equivale a 160 euros por pessoa. Aqui ao lado, em Espanha, foram gastos cerca de 600 milhões, o que dá 14 euros por pessoa. Portugal é mesmo o país da Europa com o maior gasto per capita em raspadinhas. Mais do dobro da média europeia.

“Sabemos que o jogo é uma fonte de doença. A perturbação de jogo é patológica, é uma doença psiquiátrica que tem consequências nefastas, não só do ponto de vista pessoal mas também social”, aponta Pedro Morgado.

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Uma das hipóteses que o estudo vai colocar é a de a raspadinha funcionar quase como um imposto regressivo. “Vivemos num país de impostos progressivos. Temos impostos que são mais altos para quem tem mais recursos. A hipótese que está em cima da mesa é de que este fenómeno afeta as pessoas mais pobres, e nesse caso podemos falar de um imposto regressivo, porque elas contribuem mais para o financiamento deste jogo e numa proporção muito maior face aos seus rendimentos do que aquelas com rendimentos mais elevados, e isto aprofunda as injustiças sociais”, explica o investigador, responsável por um trabalho que aponta para a existência de um problema “tão sério” que já podia tocar no domínio da saúde mental dos portugueses.

Foram estas questões, e esse mesmo trabalho, que levaram Francisco Assis, presidente do CES, a insistir na elaboração do estudo. A data para a sua apresentação não foi escolhida ao acaso. Faz esta quarta-feira um ano que foi lançada, pela Santa Casa da Misericórdia e o Ministério da Cultura, a raspadinha do património, cujas receitas servem para financiar intervenções ao património cultural. O Governo esperava arrecadar cinco milhões de euros por ano com ela. No primeiro ano arrecadou vinte, segundo dados citados pelo Jornal de Notícias. Já na altura do seu lançamento, Francisco Assis expressou receios e pediu ao Governo para esperar pelas conclusões do estudo para decidir se patrocinava, ou não, a nova raspadinha. Mas esta avançou mesmo. Já o CES teve de esperar um ano para garantir o financiamento necessário para avançar com o estudo. “Foi difícil”, admitiu o presidente do CES.

Na apresentação da iniciativa, Assis explicou que esta nasceu da sua própria perceção de que “havia aqui um problema sério”. A observação empírica da realidade indicia que a raspadinha é um jogo “a que recorrem particularmente os setores mais desfavorecidos da sociedade”, ao passo que outros estudos sugerem que é um jogo onde há uma maior presença de mulheres. “Entendo que o CES deve estar atento às questões que se colocam ao país nas áreas económica e social”, e é por isso que o estudo vai mesmo avançar.

Para o presidente do CES, Portugal tem “um problema sério ao nível da falta de estudo e de rigor”, e “tomam-se muitas decisões que não estão devidamente fundamentadas”. É, para o presidente do CES, “um dos problemas mais graves do país”. “É importante que haja estudo, reflexão e rigor e o CES pode contribuir para isso, porque estamos mais distantes”, considerou.

Ressonâncias magnéticas e “publicidade de mau gosto”

O estudo é “completamente independente”, diz Pedro Morgado, e terá três fases. “Na primeira, vamos tentar caracterizar quem são as pessoas em Portugal que jogam. Quais são as suas características sócio-demográficas, quais são os seus hábitos de jogo, partindo de uma amostra representativa da população nacional”, de duas mil pessoas. Na segunda fase, “vamos à procura das pessoas que jogam para perceber quantos é que têm sinais e sintomas de que podem estar doentes”. E na terceira fase “vamos pegar numa amostra de pessoas com a doença estabelecida e vamos tentar ver, com ressonância magnética, o que acontece com estas pessoas quando elas são expostas a estímulos que fazem recordar a raspadinha”, explica o investigador.

“Sabemos que a publicidade à raspadinha é proibida em Portugal, mas há muita publicidade indireta. As pessoas veem notícias de que alguém ganhou e dessa maneira sentem mais apetência para jogar, por exemplo. Também sabemos que há muitos postos de venda. Com este estudo queremos perceber se, de facto, o seu cérebro se ativa de forma disfuncional quando é exposto a estes estímulos”, conclui.

“Não pretendemos controlar o comportamento das pessoas”, alerta Francisco Assis. Mas a verdade é que “o Estado está envolvido neste processo e instituições estatais fazem publicidade a isto, incitam pessoas a este tipo de comportamentos”. O presidente do CES apontou casos de pessoas dos setores mais desfavorecidos que “muitas vezes estão tão desesperadas que apostam tudo à espera de solução mágica”, e o facto de este jogo ser instantâneo “gera a necessidade de repetir e gera o vício”.

Para Francisco Assis, “aqui há responsabilidades públicas e é nessa perspetiva que é preciso colocar a ciência” ao serviço das decisões políticas que se tomam. “É preciso que as entidades públicas tenham consciência da gravidade da situação”, sublinha.

“Não podemos antecipar os resultados, até pode acontecer o caso de ser tudo desmentido, e ficaríamos felizes se assim fosse”, notou Francisco Assis. As primeiras conclusões serão apresentadas dentro de “alguns meses” e o Governo será a primeira instância a ser informada. Segue-se o Presidente da República e os grupos parlamentares, e depois o país. “Se se chegar à conclusão de que estamos perante uma situação grave, acreditamos que algumas decisões não deixarão de ser tomadas”, diz o presidente do CES.

Tal como Francisco Assis, Pedro Morgado acredita que os decisores políticos “estão interessados em usar o que a evidência científica nos diz e em usar os dados que chegam da ciência como algo relevante para o processo de tomada de decisão política”. O investigador crê que “qualquer que seja o resultado deste estudo, ele vai ser tido em conta nos processos de decisão política”.

O estudo vai avançar graças ao apoio financeiro de quatro entidades: Apifarma, Fundação Mestre Casais, Fundação Manuel António da Mota e Fundação Social Bancária. Os financiadores justificaram o apoio à iniciativa com a “responsabilidade social” de cada um, e alguns não pouparam nas críticas à promoção do jogo em Portugal. “Esta iniciativa não poderia ser mais pertinente”, afirmou Rui Pedroto, da Fundação Manuel António da Mota. “Há a perceção empírica de que este é um fenómeno tipicamente português, que toca sobretudo as pessoas de mais baixo rendimento e, porventura, aquelas com menores índices de literacia. Espero que este estudo faça um levantamento exaustivo e uma caracterização exaustiva destas populações”, apelou.

O responsável criticou ainda o “tipo de publicidade que a Santa Casa faz aos jogos”, classificando-a como de “inquestionável mau gosto”, nomeadamente ao Euromilhões. “Apelar à excentricidade não me parece moralmente defensável”, atirou. “Em Portugal os problemas da saúde mental têm sido o parente pobre do SNS, espero que este estudo dê o alerta para reforçar a sua importância”, concluiu, apelando também para que as conclusões do estudo cheguem aos responsáveis pela operação, nomeadamente a Santa Casa da Misericórdia e o Governo.