Organizadores e participantes da vigília anual em Macau pelas vítimas do massacre de Tiananmen admitem que a evocação do 4 de junho de 1989 faz-se este ano em privado, perante o “crescente ambiente político hostil”.
No lugar da vigília em honra das vítimas do massacre de Tiananmen, que se realizava anualmente no Largo do Senado em Macau, o ativista Au Kam San vai transmitir em direto no Facebook a imagem de uma vela a arder.
“Significa que a luz das velas do 4 de junho nunca se vai extinguir em Macau”, disse à Lusa.
Para quem costumava participar na tradicional vigília ou visitar a exposição itinerante sobre os eventos de 1989, resta agora evocar as vítimas de Tiananmen longe das ruas. E Au Kam San antecipou-se, recordando nas redes sociais o movimento desde o dia em que teve início a ocupação estudantil da maior praça da China.
Como a exposição não pode ser organizada, decidi publicar um artigo diariamente no meu Facebook desde 15 de abril, descrevendo diariamente os eventos de 1989 e o impacto que tiveram no percurso até 4 de junho”, conta.
Este sábado, faz 33 anos que o exército chinês avançou com tanques para dispersar os protestos pacíficos liderados por estudantes, que pediam reformas democráticas para o país, causando um número de mortos que ainda hoje é objeto de discussão. Estimativas chegam às dez mil vítimas, embora Pequim defenda que a repressão dos “tumultos contrarevolucionários” tenha levado à morte de duas centenas de civis.
Ng Kuok Cheong, também fundador da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia (UMDD), que habitualmente organizava a exposição e vigília em Macau, confirmou à Lusa não ter endereçado às autoridades este ano — pela primeira vez — nenhum pedido para assinalar publicamente a data.
“Claro que em privado fazemos o que devemos fazer”, frisa o ex-deputado, para quem “esta é uma decisão que cabe a cada um”. Ng ressalva: “Mas não podemos revelar o que vamos fazer”.
À Lusa, o Corpo da Polícia de Segurança Pública, que por lei tem de ser notificado da organização de reuniões ou manifestações, confirmou que até 31 de maio não tinha recebido “qualquer aviso prévio” sobre a vigília.
Também o presidente do Instituto para os Assuntos Municipais (IAM), José Tavares, rejeitou ter chegado àquele departamento qualquer solicitação respeitante à exposição, onde costumam ver-se imagens e documentos sobre o massacre da Praça da Paz Celestial.
Nos últimos dois anos, o IAM não autorizou a utilização de espaços públicos para a mostra fotográfica. Também em 2020, as autoridades proibiram, em Macau e Hong Kong, pela primeira vez em 30 anos, a realização da vigília em espaço público, numa decisão justificada com os trabalhos de prevenção da Covid-19.
Já no ano seguinte, a PSP citou pela primeira vez razões políticas para interditar a comemoração, alegando risco de violações do Código Penal, nomeadamente dos artigos sobre a “ofensa a pessoa coletiva que exerça autoridade pública” e o “incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido”. Uma decisão validada posteriormente pelo Tribunal de Última Instância (TUI), quando apresentado recurso da decisão das autoridades.
Numa resposta à Lusa, o gabinete do secretário para a Segurança Wong Sio Chak aponta que “os direitos e liberdade de reunião e de manifestação dos residentes de Macau” são sempre “respeitados e garantidos, de acordo com a lei”, recusando, no entanto, “emitir comentários acerca de casos concretos”.
Contudo, um comunicado divulgado no ano passado, o governo considerou que a vigília poderia constituir uma ameaça à segurança nacional.
Au Kam San realça que, neste “crescente ambiente político hostil em Macau”, e com o TUI a interpretar a realização da homenagem como um risco de “difamar o governo chinês” e passível de ser “visto como um delito criminal”, os membros da UMDD demonstraram “preocupação profunda”, aconselhando a não trazer o momento histórico para as ruas de Macau.
Este facto “não é um sintoma de uma situação saudável”, reage o advogado João Manuel Vicente.
A viver há mais de uma década no território, o português lembra-se de honrar “desde sempre”, no Largo do Senado, a memória dos estudantes que perderam a vida durante o movimento contestatário, naquele que descreve ser um momento “comovente e de simbolismo” na região administrativa chinesa.
“O que sabemos este ano é bastante menos daquilo que soubemos nos anos anteriores, cada vez se fala menos sobre este tópico”, nota.
“[A vigília] era um sinal de grande liberdade da cidade, de abertura e era assumido e tratado com normalidade e naturalidade”, acrescenta.
João Manuel Vicente admite a possibilidade de evocar este ano o momento entre o “círculo de amigos e próximos” e com a leitura sobre o tema “através dos meios, por ora livres” para “procurar informação extra” e “revisitar o tema”.
Já Ng Kuok Cheong diz que a opção da UMDD suspender os eventos públicos poderá ser temporária e realça a importância de zelar por esta “memória muito importante”.
“Claro que vamos guardar e proteger todo o material”, afirma, referindo-se às imagens e informações que integram o espólio dos eventos do 4 de junho.
“Para o Partido Comunista Chinês, isto [recordar Tiananmen] é um problema, não só pela segurança nacional, mas porque se está a criar uma batalha política à volta do que é a democracia no mundo, e, no que diz respeito ao 4 de junho, luta-se por uma reinterpretação da história e faz-se de tudo para travar quaisquer elementos negativos”, completa.