Muita coisa muda numa década – e a canção folk americana existencialmente inquisitiva não é exceção, por muito que a expressão “existencialmente inquisitiva” leve a crer tratar-se de algo profundamente exótico. Em 2009, Jason Molina, líder dos Songs: Ohia e posteriormente dos Magnolia Electric Co morria, deixando vago o cargo de rei da (aham) canção folk americana existencialmente inquisitiva; Bill Callahan fazia (em 2009) o seu último grande disco, Sometimes I Wish We Were an Eagle, antes de entrar na sua fase de fera amansada; Will Oldham já não editava um grande disco desde Master and Everyone (de 2003, sob o nome Bonnie “Prince” Billy).

Nesse exato ano de 2009, Sharon van Etten lançou o seu primeiro disco, Because I Was in Love, em que desenhava a matriz para as obras-primas que se seguiriam, em particular Tramp (2012) e Are We There (2014), pese embora Epic (2010) também possa ser colocado no mesmo patamar de grandeza. Angel Olsen chegaria mais tarde, em 2012, com Half Way Home, mas só em 2014, com Burn Your Fire for No Witness, entregaria a sua candidatura para rainha da (vou só repetir mais uma vez, até parecer uma categoria real, não uma que inventei agora) canção folk americana existencialmente inquisitiva.

A competição com van Etten impediu que a coroa fosse imediatamente colocada em Olsen, mas o melhor desta viria nos dois sumptuosos discos seguintes: afastando-se da simples folk, adensando o seu som, tornando-o ocasionalmente pop, outras rock, por vezes sinfónico, ocasionalmente sintético, mas sempre grandioso, Olsen alcançou o admirável feito de editar dois tours-de-force consecutivos em apenas três anos. My Woman (de 2016) e All Mirrors (de 2019) não são apenas obras-primas, são obras-primas que alteram o ordenamento do território, alteram as coordenadas do que é suposto cada instrumento fazer e, sobretudo, mudam a nossa geografia emocional.

[o vídeo de “All The Good Times”:]

Outras seguir-se-iam, tornado a (vejam se adivinham) canção folk americana existencialmente inquisitiva um território dominado por mulheres: primeiro foi Weyes Blood, que começou por soar a uma Buffy Saint-Marie ensandecida, antes de introduzir cinemascope no seu som e criar uma espécie de pop futurista de raiz na década de 70; depois vieram Julia Jacklin (mais atreita ao universo indie-rock) e Sarah Marie Chadwick. Haverá outras, consoantes os gostos, mas por estes dias em que Sharon van Etten e Angel Olsen regressam, não há dúvida sobre as rainhas do género.

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Por tudo isto talvez só seja possível entender Big Time, o novo disco de Olsen, se recuarmos a 1967, quando Bob Dylan editou John Wesley Harding. Vindo de uma sucessão de discos em que fora sucessivamente visto como um herói folk dos pobres e posteriormente (com Highway 61 Revisited, de 1965, e Blonde on Blonde, de 1966) um traidor à causa folk ou um inventor sónico, Dylan sentiu necessidade de dar um passo atrás, fugir do mundo, ser outra coisa. John Wesley Harding foi um regresso às origens folk, um disco de conforto; dois anos depois, com Nashville Skyline (de 1969), Dylan, ainda à procura de não ser catalogado, ainda à procura da música que o fizera querer ser músico, virava country.

Angel Olsen executa um movimento similar em Big Time: depois de dois discos grandiloquentes, maiores que a vida, em que se libertou da folk e tentou tudo (pop, rock ruidoso, sintetizadores, cordas gigantes, o carnal e o etéreo, o real e o onírico), ela parece querer regressar à terra, com as canções mais simples mas mais estruturadas da sua carreira, o tipo de canções que podiam ter sido escritos no alpendre, ao fim do dia, com meia dúzia de amigos e dois jarros de sangria.

[o vídeo de “Big Time”:]

A slide-guitar está por todo o lado – desde a extraordinária abertura de “All the good times” à delicadíssima “This i show it works”; há pianos, órgãos, cravos, cordas, metais, mas raramente há isto tudo ao mesmo tempo – as canções concedem espaço a cada instrumento para fazer a sua aparição, o seu sapateado e, com isso, respiram. Foi-se a grandeza monumental, veio uma brisa boa. Angel nunca falha.

O momento mais grandiloquente de um disco que podia ter sido escrito por Dolly Parton ou Emmylou Harris é mesmo a abertura, com “All the good times”, a partir dos 2m35, quando todos os instrumentos se içam em uníssono e Olsen diz adeus a um amor, coisa que fará ao longo de todo Big Time. Logo a seguir a faixa título traz o disco à Terra, com a slide-guitar de novo por companhia e ocasionais teclas – é uma faixa lindíssima, com um extraordinário refrão em que Olsen canta “I’m losing, I’m losing (..) and I’m loving you big time, I’m loving you more”. Este é um disco de separação, pensamos. Talvez – mas não é exatamente o tipo de separações que nos ocorre quando ouvimos a palavra separação.

O que terá acontecido na vida de Olsen? Por alturas de All Mirrors (2019) ela ainda dizia em entrevistas ser heterossexual, o que qualquer pessoa que privou dois minutos com ela sabia ser falso; em 2021 ela assumiu-se gay. Cada pessoa tem o seu tempo, o seu momento para se sentir confortável com o que os outros sabem de nós.

[ouça “Big Time” na íntegra através do Spotify:]

Antes de anunciar ao mundo que era gay, Olsen apaixonou-se – foi há coisa de dois anos e o amor levou-a a contar aos pais (adotivos, se é que isso importa) que era gay. Pouco tempo depois – e com escasso intervalo entre si – ambos os pais morreram. Se Olsen sempre pareceu usar as suas experiências pessoais para criar, desta feita o pano de fundo envolve a tragédia da perda parental, a perda amorosa anterior a apaixonar-se, a paixão e a mistura de todos estes sentimentos.

Este tipo de matéria-prima seria altamente apropriado para discos tão excessivos como My Woman e All Mirrors; mas Big Time é um disco de nuances, em que é preciso usar lupa para se perceber para lá do óbvio: “Big time”, a canção, é composta a meias com a companheira de Olsen, Beau, que conheceu a mãe de Angel no funeral do pai dela. “Big time” parece uma canção de separação – e é, dos pais – mas também é de êxtase amoroso e da aceitação da perda e da mudança.

Há uma expressão que os americanos usam para descrever discos assim: grower. São os discos que se revelam devagar, por oposição a My Woman e All Mirrors, que nos atacavam de frente e nos derrubavam. Uma canção como “Go home”, sobre como sobreviver a um coração partido, passar tempo com as pessoas de que se gosta, sarar as feridas, não é direta como “Shut Up Kiss Me”, mas o prémio para quem espera é igualmente grandioso.

Os pais de Angel Olsen eram do Bible Belt, pessoas religiosas. Ela passou uma vida a pensar que a sua homossexualidade não seria aceite por eles – mas foi. A mãe de Angel Olsen era uma grande fã de música country – onde quer que esteja, há-de estar a trautear Big Time, orgulhosa da filha.

Angel Olsen apresenta o novo álbum “Big Time” ao vivo em Lisboa a 26 e 27 de setembro, no Capitólio