A guerra na Ucrânia terá grandes impactos no futuro ao nível da circulação de mercadorias, pessoas e ideias, interrompendo as dinâmicas económicas e sociais das últimas décadas de globalização, defendeu o historiador e antropólogo José Manuel Sobral.
“Penso que vai ter um impacto enorme, na medida em que já está a ter”, afirmou em entrevista à agência Lusa o investigador, aposentado, do Centro de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, observando que o conflito no leste da Europa acabou com “um certo convívio” e “uma certa normalidade” nas relações europeias com a Rússia. Ao mesmo tempo, segundo o historiador, o regresso da guerra à Europa, vem pôr em causa “o mundo do Interrail” das últimas gerações e a ideia de “uma paz perpétua”.
“Há uma interrupção das comunicações a todos os níveis, desde logo de trocas económicas muito importantes entre a União Europeia, os Estados Unidos e a Rússia, mas também de circulação de pessoas”, exemplificou José Manuel Sobral.
“Evidentemente que vão desaparecer os vistos, vão desaparecer as viagens, vai desaparecer essa importante circulação de pessoas, ideias e mercadorias que estava associada à globalização tal como a conhecíamos”, estimou, expondo o caso do ministro do dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, que acabou por cancelar uma deslocação à Sérvia face aos impedimentos à circulação aérea. “As linhas aéreas russas não podem circular no espaço europeu, norte-americano. Está tudo interrompido. Isso acabou e vai ter consequências enormes”.
Tal como há cem anos, acumulam-se danos de uma pandemia e de uma guerra, mas para o investigador, que se dedicou ao estudo da pneumónica, a história não se repete e o impacto do coronavírus não é comparável ao da gripe que ocorreu na fase final de uma guerra de “enormes proporções” (I Guerra Mundial, 1914 — 1918).
Apesar de sublinhar que não é possível comparar o momento atual em termos de mortalidade — estima-se que a pneumónica tenha dizimado um quarto da população mundial – o historiador recordou as transformações que acompanharam o decurso da I Grande Guerra, nomeadamente a revolução russa, que tirou do poder a monarquia e teve repercussões políticas a nível mundial, com a expansão dos movimentos comunistas. “A pandemia de 1918 teve um impacto muito mais brutal, quer em termos de mortalidade, quer por ser uma conjuntura, apesar de tudo, muito mais grave do que a nossa”, sustentou.
José Manuel Sobral considerou, no entanto, “ameaçador” o conflito desencadeado pela invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro, até porque mesmo sem o combate bélico se alastrar a outros territórios, há também “uma guerra económica”, que poderá levar a “uma crise muito dramática”, em termos de abastecimento para os países que dependem das importações de cereais, tanto da Ucrânia como da Rússia, noutras latitudes, nomeadamente em África e na Ásia.
“Estamos num cenário de quase confronto na Europa. Não há confronto porque existe a ameaça das armas nucleares e de a guerra tomar proporções dificilmente imagináveis e muitíssimo mais trágicas. Estamos num cenário de enorme alcance em termos de relações internacionais, tanto mais que está ligado a um certo confronto económico, mas também político e ideológico com a China”, acentuou.
Os entraves ao funcionamento de uma economia global, em virtude das sanções do ocidente à Rússia, com a consequente resposta do regime do Presidente russo, Vladimir Putin, marcam um momento de viragem histórica, na opinião de José Manuel Sobral. “Estamos no limiar de um mundo que vai ser muito diferente daquilo que foi nos últimos 20 anos, Isso não tenho dúvidas!”, exclamou, quando convidado a analisar o impacto de guerras e pandemias nas sociedades.
“Foi decretado o fim político da pandemia, mas a pandemia não acabou. Agora o que está a acontecer é que, de alguma maneira, a epidemia desapareceu, com a guerra e com o modo como as autoridades públicas um pouco por toda a parte, mas sobretudo na Europa, estão a lidar com isso”, disse.
Para o antropólogo, apesar de o contágio continuar elevado e a mortalidade preocupante, os Estados europeus estão a promover “uma certa banalização” da pandemia de covid-19, ao passarem a ideia de que a vida voltou ao normal: “Do tipo ´temos de viver com ela´. E isso tem uma enorme influência na imaginação e nos comportamentos das pessoas”. “De alguma maneira, está a ser menorizada [a pandemia] enquanto evento do nosso quotidiano”, considerou, referindo que os acontecimentos na Ucrânia dominam a atualidade informativa.
Questionado sobre o eventual surgimento de uma nova ordem mundial na sequência da guerra em curso, com países tradicionalmente neutrais a tomarem posição e iniciativas de adesão à NATO, o investigador começou por ironizar: “Não sei se é uma nova ordem, no sentido em que não sei se é ordenado, mas um novo cenário mundial penso que sim. Estamos perante o dealbar de um novo cenário mundial”.
De uma coisa não têm dúvidas, os nacionalismos, as identidades nacionais, continuam “vivíssimos” no século XXI. “O nacionalismo é uma presença ubíqua em toda a parte. Se uma coisa provaram os últimos conflitos é que os nacionalismos não tinham perdido força. Podíamos olhar para as relações entre os nacionalismos e a extrema direita, mas não vale a pena”, acrescentou.
É também na relação entre nacionalismos e colonialismos que encontra justificação para a posição de determinados países no xadrez geopolítico que envolve o conflito que opõe a Rússia à Ucrânia, já que Estados africanos formados nacionalmente com apoio soviético, como a África do Sul, Angola e outros, dificilmente terão simpatia pelas sanções europeias e o boicote a produtos russos.
Leitura idêntica se pode aplicar à posição da China, não esquecendo “o ressentimento de um Estado muito antigo” que tem lutado pela supremacia económica, tecnológica e científica, na análise do historiador. “É preciso não esquecer que a China foi invadida nas guerras do ópio, no século XIX, pelas potências ocidentais e teve lá concessões e até colónias, como Hong Kong, por exemplo, até muito tardiamente”, constatou.
Perante um conflito de desfecho ainda imprevisível, José Manuel Sobral admitiu a possibilidade de o serviço militar obrigatório regressar a muitos países, num contexto de rearmamento do Estados e reforço da NATO. “É uma situação de enorme seriedade e estamos num contexto do qual se fala pouco, em que existem potências com capacidade para destruir a vida na Terra, como a conhecemos, através das armas nucleares”, alertou.