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Quem é que não tinha medo do recreio da escola?

Este artigo tem mais de 2 anos

A primeira longa-metragem da realizadora belga Laura Wandel é uma viagem à crueldade do mundo infantil, à forma como, entre casa e escola, se podem manifestar, ao mesmo tempo, fragilidade e força.

Maya Vanderbeque e Günter Duret são os protagonistas de "Recreio"
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Maya Vanderbeque e Günter Duret são os protagonistas de "Recreio"

Maya Vanderbeque e Günter Duret são os protagonistas de "Recreio"

São precisos poucos segundos para que o espectador fique siderado com o olhar de Maya Vanderbeque, a protagonista de “Recreio”, primeira longa-metragem da belga Laura Wandel, que causou um pequeno furor na edição de 2021 do Festival de Cannes. É uma história recorrente a do mediatismo de Cannes, de tal maneira que por vezes torna-se banal. Mas neste caso vale mesmo a pena prestar atenção. Porque “Recreio” é um retrato visceral em volta do mundo violento das crianças. Tem o bullying como cenário, mas vai para lá disso. E é esse “para lá” que faz a diferença.

“Recreio” sente-se bem real, intemporal. E para isso contribui muito o tal foco na violência. “Recreio” acontece num mundo contemporâneo e desvia as atenções de formas de bullying mais presentes hoje — por via da tecnologia — e concentra-se na sua presença física, seja pela agressividade, tortura, como também pelo peso das palavras, do gozo e das ideias feitas dos adultos que as crianças imitam para se fazerem valer. Frases do universo “o meu pai é melhor do que o teu”. Apesar de desviar as atenções, não quer dizer que a tecnologia não esteja presente. Está, mas ao fundo, é uma espécie de ruído, de conversa que se ouve fora de campo, porque a preocupação de Laura Wandel é a manifestação física, mostrar como o recreio, esse pequeno espelho de todas as nossas futuras interações sociais, é um local essencial de integração.

[o trailer de “Recreio”:]

Em pouco mais de uma hora, a realizadora belga cria um retrato violento sobre a infância, um que se sente na pele e é reconhecível pela forma como transmite dinâmicas de relação do mundo ocidental. Grande parte do impacto é causado pelo modo como filma Nora (Maya Vanderbeque), a protagonista, num ângulo que insiste em colocá-la no seu lugar. Nora tem sete anos e entramos na sua vida no dia de regresso às aulas, numa nova escola, com o seu irmão mais velho, Abel. Salta de imediato à atenção a tentativa da realizadora em explorar a vulnerabilidade de Nora face aos adultos, o ângulo com que a câmara a filma carrega constantes sensações de vigilância e, também, do confronto que representa o momento em que se contam as coisas da escola aos adultos.

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E isso é logo colocado em cima da mesa quando Nora vê o seu irmão a ser intimidado por outras crianças e se sente impotente face à situação: protege o irmão contando ao pai o que se passa, ou perpetuar a violência sendo leal ao irmão, mantendo o silêncio? O dilema de Nora é o motor para o resto do filme e a partir desta situação, Wandel promove o peso das decisões de Nora para com o seu irmão, colegas e os adultos. E, claro, como em último caso isso afeta todas as dinâmicas de recreio e molda a sua personalidade. Wandel não é piedosa.

Rapidamente percebemos que não se trata de piedade, mas de realidade. O que transtorna ao longo do filme é sentirmo-nos na pele de Nora. Maya, a atriz, carrega no olhar as incertezas, as inseguranças e a raiva contida de uma criança de sete anos. De alguém que está a perceber as dinâmicas do seu mundo enquanto luta contra elas, seja por princípios ou por proteção (do irmão). E Wandel coloca-a num ponto vulnerável pela forma como a filma. Seja em relação aos adultos – como já mencionado –, como pela permanente ideia de que o corpo de Nora está ameaçado por algo que pode acontecer fora de campo. Porque, afinal, é esse um dos grandes medos de estar no recreio: não estar alerta para o que aí vem, ser apanhado de surpresa ou até ser dano colateral de outra coisa qualquer que esteja a acontecer.

Uma das grandes vitórias de “Recreio” é a de rapidamente nos forçar a deixar de pensar em bullying para passarmos a pensar em infância, aquela distante sensação de que tudo é uma aprendizagem numa altura das nossas vidas em que não se sabe medir o real peso das decisões

E é assim que se vive ao longo de “Recreio”. Com os nervos à flor da pele, com um sentido de alerta permanente e com a estranha sensação de memória de criança, de que todos já fomos, pelo menos um bocadinho, como Nora. À medida que este mundo violento à volta da protagonista acontece, vive-se a sensação de como se é moldado para a vida adulta a partir do recreio. Por dinâmicas, interações, brincadeiras. Ou até pela ausência delas.

Não há muitos filmes assim. E há ainda menos sobre a infância e de como a infância realmente é vivida pelos olhos de uma criança. Grande parte das obras sobre crianças são sobre uma imagem adulta desses tempos, “Recreio” corta com isso ao colocar o espectador à altura das crianças. A experiência é vivida a partir da altura de Nora e de como ela vê o mundo. E a experiência também é vivida por aquilo que acontece fora de campo, pelo alerta constante de uma familiar sensação de vulnerabilidade.

O resultado não pode deixar de ser violento, real. Uma das grandes vitórias de “Recreio” é a de rapidamente nos forçar a deixar de pensar em bullying para passarmos a pensar em infância, aquela distante sensação de que tudo é uma aprendizagem numa altura das nossas vidas em que não se sabe medir o real peso das decisões. “Recreio” também se ausenta da ideia de inocência, preferindo a vulnerabilidade. São detalhes, mas tratam-se de detalhes que fazem a diferença para mostrar a violência da infância. Não é bonito, nunca o poderia ser.

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