As palavras são quase sempre em excesso quando se tenta falar de perda. A dor não se coaduna com métricas linguísticas, ela esvazia-nos a voz, mergulha-nos no amargor mais intragável, até ao dia em que, borboleta saída do casulo, exala límpida, em paz. Arooj Aftab experimentou essa dor em 2018, com a morte do irmão mais novo, Maher, e da grande amiga Annie Ali Khan, modelo e jornalista paquistanesa. Já tinha dois álbuns lançados, Bird Under Water (2014) e Siren Islands (2018), um outro em projeto, mas a dor, sibilo persistente de cascavel, estrangulou-a até que, enfim, a libertou em 2021, com Vulture Prince.

A harpa que abre a primeira faixa, companheira do lamento de Arooj em todo o álbum, juntamente com o contrabaixo, os violinos e a guitarra, é o presságio de uma viagem que é purga e renascimento, um percurso “entre a luz e a escuridão”, como a própria define em entrevista ao Observador, tão belo como só a música associada ao luto consegue ser. Nas sete faixas de Vulture Prince (que na sua reedição conta ainda com “Udhero Na”, oitava canção para a qual foi convocada a cítara) há um delicado cruzamento entre a música de tradição sufi, o jazz, e o minimalismo. Nelas cabem as palavras cantadas em Urdu de poetas sufis do séc. XIX e do início do séc. XX, como Mirza Ghalib ou Hafeez Hoshiarpur, e também um poema de Annie, em “Saans Lo”.

“Gosto do que é escrito em Urdu, da sonoridade da língua quando é cantada. Tem a capacidade de expressar coisas muito complexas de uma forma minimalista, o que é uma coisa rara, única e bonita”, refere Arooj Afatb e logo nos lembramos dos versos de “Mohabbat”, uma das muitas maneiras de dizer amor em Urdu: esta tristeza iguala toda a tristeza do mundo.

Da admiração de Obama ao Grammy

Foi precisamente “Mohabbat” (e tão bem que podia ser Filho da Mãe a tocar-lhe aquele harpejo de fundo em repetição) que chamou a atenção de Barack Obama, tendo-a destacado na sua playlist de verão de 2021. “Fiquei bastante surpreendida com a escolha”, diz. Mais surpreendida ficou com a nomeação para dois Grammys, em 2022, tornando-se na primeira mulher paquistanesa a consegui-lo. Acabou por ganhar o de Best Global Performance (o de Best New Artist caiu para Olivia Rodrigo) com “Mohabbat”, claro, palavra que cada vez que é proferida por Arooj Aftab é como se o seu choro se confundisse com o próprio choro da Terra.

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[Arooj Aftab ao vivo no Tiny Desk da NPR:]

“As pessoas adoram prémios e definitivamente estão a olhar para mim e a tratar-me de forma diferente. Isso é bom”, confidencia a música nascida há 37 anos na Arábia Saudita, onde o sopro ancestral e a vastidão dos desertos a fascinavam. Mas foi só no Paquistão, para onde se mudou com 11 anos, que Arooj soube que queria seguir uma carreira musical: “Tornou-se bastante óbvio e achei que não havia mais nada que pudesse fazer para além de música”.

Os Estados Unidos foram a paragem que se seguiu e na Berklee College of Music, em Boston, desenvolveu a sua identidade musical, bebendo muito do jazz. Ouvir Arooj é ouvir a elasticidade da dor de Billie Holiday, mas também o pranto de Jeff Buckley – ela que se tornou viral na internet quando em adolescente interpretou a versão de Buckley de “Hallelujah” – ou até o sentimento de Amália Rodrigues. “Tive toda uma fase do fado”, confessa, dizendo que há várias influências naquilo que faz que vêm do fado, facilmente percetíveis quando ouvimos “Diya Hai” ou as inflexões da sua voz em “Inayaat”. “O português, como língua, é muito bonita de ser cantada”. Tal como o Urdu.

Expandir a partir das origens

A exceção à sua língua materna em Vulture Prince está na faixa “Last Night”, cantada em inglês. Aqui, Arooj Aftab prova-nos que é possível continuar a brincar na tristeza, ao trazer o reggae e o dub para um tema que mistura o grande poeta e teólogo do século XIII, Rumi, com a árvore da cannabis. “As pessoas que gostam de Rumi também gostam de fumar erva e, muitas vezes, fazem as duas coisas ao mesmo tempo”, atira com aparente despreocupação, “eu não gosto de levar as coisas demasiado a sério”. Porém, basta ouvi-la a cantar com a sua voz sobreposta em camadas “Last night my beloved was like the moon, so beautiful”, para as águas no nosso peito se começarem a mexer. Nada é estanque em Vulture Prince, flui a dor, o amor, as lágrimas e, sem querer, o riso também. Flui a vida.

[ouça “Vulture Prince” de Arooj Aftab na íntegra através do Spotify:]

Chegar a este nível de sublimação não é apenas explicado pela formação no Berklee College of Music ou por uma herança cultural paquistanesa em que a música, a poesia e a arte em geral estão socialmente muito presentes. Há aqui um pequeno parêntesis na história de Arooj que fez toda a diferença: o encontro em Nova Iorque com a lendária Abida Parveen, nome referencial da música sufi paquistanesa. “Conhecer uma pessoa como ela – que é uma santa, mas também um monstro da música – naquele momento da minha carreira, em que era muito nova e ainda estava a tentar perceber o que é que queria ser e quem é que queria ser, foi mesmo fundamental”. Tão fundamental quanto é para uma árvore saber os seus ramos bem enraizados.

Em Abida Parveen, Arooj encontrou as suas origens e expandiu-as, ganhando uma voz própria. “O que gosto na música sufi não é tanto a sua componente tradicional, mas os aspetos minimalistas, de repetição de pequenos padrões. Não há muita coisa a acontecer, mas é uma música muito vasta, que tem elementos de paz e de calma”, refere, sublinhando que na sua linguagem cabem o amor, a desintoxicação, o luto, a morte e as relações. “Por isso, em boa verdade, acredito que a música sufi pode ser qualquer coisa”.

A dela ganhou a forma do voo de um príncipe abutre (Vulture Prince), um voo que é morte e sanação da natureza. Aplanada a dor, Arooj debruça-se já num próximo trabalho. “Não sei como será. De certeza que não será completamente diferente, mas será…”, faz uma pausa, pensa, para concluir, “mais”. Ela tem o universo dentro dela. A expansão é permanente. Pelo meio, ainda nos oferecerá um disco de jazz com o seu Love in Exile trio, ao lado de Vijay Iyer no piano e Shahzad Ismaily no contrabaixo. Sairá na próxima primavera, promete. Este sábado, 25 de junho, é tempo de a ver no Rock in Rio, no palco Rock Your Street. Dia 26, no Festival MUSCARIUM, em Sintra (21h) e na terça-feira, dia 28, em Braga, no Espaço Vita (21h30). “Estou muito entusiasmada com a minha primeira vez em Portugal”, partilha. Nós também estamos.