O Tribunal de Guimarães considera que, após tomar conhecimento dos maus-tratos a noviças no “convento”, em Requião, Vila Nova de Famalicão, a Diocese de Braga “nunca priorizou a proteção das vítimas”, mas sim o património.

A conclusão consta do acórdão esta sexta-feira proferido com a condenação de um padre e de três ‘freiras’, a penas entre os 12 e os 17 anos, por escravizarem jovens raparigas, durante cerca de três décadas, na Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, instalada num convento, em Requião, pertença do Centro Social de Apoio e Orientação da Juventude, uma Instituição Particular de Solidariedade Social, sob a forma de Instituto de Organização Religiosa.

Padre e três “freiras” acusados de escravizar raparigas em Famalicão conhecem acórdão

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“Apesar dos inúmeros relatos de maus tratos protagonizados pelas noviças que haviam abandonado o ‘convento’ [associação de fiéis], constata-se que a intervenção da Diocese de Braga nunca priorizou, nas suas intervenções, a proteção das vítimas”, lê-se na decisão, a que a agência Lusa teve acesso.

Segundo o Tribunal de Guimarães, a atuação da Diocese de Braga “quedou-se pelo aspeto burocrático, consubstanciado nas revisão dos estatutos” do Centro Social e da Fraternidade, “no pedido de intervenção ao padre Luís Miguel para pôr termo a práticas devocionais inadequadas, na constituição de uma comissão administrativa e na medida cosmética consubstanciada na expulsão de dois elementos, alegadamente, mais comprometidos com esses maus tratos”.

Aceita-se que a Diocese de Braga não tenha um corpo de polícia ou de inspetores, que lhe permita impor pela força os seus comandos. Mas, estranha-se que, já em 2011, numa altura em que a Igreja, no mínimo, já se tinha apercebido de práticas devocionais inadequadas levadas a cabo pela Fraternidade, se tenha apressado em atribuir à Pia União [Fraternidade] a condição de Associação pública de fiéis, sem ter exigido como contrapartida o abandono de tais práticas devocionais inadequadas”, sustenta o acórdão.

O coletivo de juízes frisa que os depoimentos das vítimas “evidenciaram a falta de apoio que sentiram por banda da Arquidiocese de Braga”.

“É, aliás, sintomático o que declarou a assistente Luísa Freitas que referiu, que, na sequência da denúncia que efetuou junto dos órgãos eclesiásticos, chegou a ser recebida pelo Dom Antonino e ouviu este dizer ao Dom Jorge Ortiga que estivesse descansado porque eram apenas três senhoras humildes, o que evidencia que a Diocese de Braga, nunca se preocupou nem priorizou as vítimas, tendo direcionado o seu foco para questões burocráticas, ou melhor, patrimoniais”, salienta o Tribunal de Guimarães.

Com base nos depoimentos, o coletivo de juízes concluiu que “a primeira preocupação da Arquidiocese, perante o relato dos maus-tratos, foi expurgar as ‘maçãs podres’, na expectativa de preservar a árvore inquinada”.

Resulta dos autos que, a partir de 2014/2015, começou a chegar à Arquidiocese de Braga “avultada correspondência” a dar conta “dos castigos, agressões físicas e verbais perpetradas no seio da Fraternidade”.

“Também não deixa de ser paradoxal que, quando a Arquidiocese de Braga tomou conhecimento dos relatos dos maus tratos — em 2014/2015 -, além de nada ter feito em prol da proteção das vítimas, ainda tenha vindo a terreiro, através do seu Arcebispo, sustentar publicamente que as arguidas e assistentes não são freiras, nem estão validamente consagradas, procurando, por essa via, desresponsabilizar-se do escândalo público, relativamente ao qual, está mais do que comprometida”, defende o tribunal.

Para contrapor à versão da Diocese de Braga, o coletivo de juízes lembra que algumas noviças “foram consagradas em cerimónias religiosas presididas pelo então Bispo Emérito, não sendo crível que este não tivesse a autorização expressa ou tácita do Bispo em exercício de funções”.

“Aliás, pouco tempo antes de virem a público os relatos de maus tratos, mas já depois da Arquidiocese ter pleno conhecimento dessas práticas devocionais, ditas inadequadas, já a Arquidiocese de Braga havia procurado reforçar a sua tutela sobre esses entes, através da revisão dos estatutos da Fraternidade e do Centro Social, por causa do alegado ‘impacto social’ que estavam a ter junto da comunidade”, sublinha o Tribunal de Guimarães.

O Tribunal de Guimarães lamenta “a posição esquizofrénica” que a Arquidiocese de Braga foi assumindo ao longo do processo.

“Se é certo que assume que tem a tutela daqueles dois entes ( pelo menos, depois e 2014), ao ponto de ter aventado a hipótese da sua extinção, com a consequente reversão dos bens para a Igreja, facto é que nunca se preocupou com a lesão das expectativas destas jovens, que entraram na Fraternidade convictas da sua vocação religiosa e que naturalmente almejavam a sua válida consagração”, sublinha o acórdão, de 403 páginas.