Em termos de gosto por comédia, o mundo divide-se em dois grupos: aqueles que acham que “Friends” é a melhor invenção desde o ar condicionado (nota-se que escrevo migada por uma vaga de calor?) versus aqueles que acham “Friends” uma versão demasiado desinteressante e certinha do que é o humor. Se faz parte do primeiro grupo, é altamente improvável que as séries do desconcertante canadiano Nathan Fielder sejam para si. Um dos sacerdotes máximos do chamado “humor de desconforto”, misturando realidade com ficção cómica, Nathan regressa agora com “The Rehearsal”, cinco anos depois do fenómeno de culto “Nathan For You”.
“Nathan For You”, que passou na SIC Radical quando não havia cá streamings para descobrir programas novos, tinha como premissa fazer de Nathan uma espécie de guru do marketing para pequenas empresas em apuros, dando a pessoas reais conselhos estapafúrdios que as mesmas punham em prática. De restaurantes a mecânicos, passando por petting zoos e lojas de souvenirs manhosos, Nathan pode não perceber nada de gestão, mas tornou-se num especialista no subgénero de reality comedy.
[o trailer de “The Rehearsal”:]
O exemplo mais reconhecível pelo grande público é Sasha Baron Cohen, que soube transformar em ouro a vergonha alheia provocada pelos seus Ali G ou Borat. Mas há mais: Jena Friedman e a série cómica de crimes reais “Indefensible”; Johnny Knoxville e o seu mítico “Jackass” da MTV ; “Triumph The Insult Comic Dog”, um asneirento cão de borracha que começou a fazer reportagens para o “Late Night With Conan O’Brien” e foi recentemente preso no Capitólio quando filmava um segmento para o programa de Colbert; Billy Eichner e os seus potentes pulmões a gritar com transeuntes em “Billy On The Street”; ou a recente joia da HBO “How To With John Wilson” (vejam, vejam, vejam, é o melhor programa do género já feito). E para o público em casa, sempre a mesma dúvida: será que aquelas pessoas reais sabem que tudo aquilo é apenas um programa de humor? Serão ingénuas, burras, deslumbradas ou apenas desprevenidas?
Ora é exatamente este alicerce da reality comedy que Nathan Fielder deita agora abaixo em “The Rehearsal”: o de nos deixar na dúvida sobre o que é guionado e o que é inesperado. O primeiro episódio ainda nos pode deixar na dúvida, mas daí para a frente torna-se óbvio que o criador quer é dar um rotativo na boca do subgénero cujas regras eles próprio ditou (além do trabalho em nome próprio, colaborou, entre outros, com os supra-citados colegas de estilo Baron Cohen e John Williams). “The Rehearsal” é, sim, uma série completamente guionada, para se tornar numa sátira aos vícios deste estilo de programa. Parece confuso e, talvez, um bocado meta demais? É por é.
O conceito de “The Rehearsal” é simples: Nathan ajuda pessoas a preparem-se (com ensaios, daí o nome) para momentos-chave da sua vida que os deixam nervosos por quererem que corram da melhor maneira. No primeiro episódio, um homem pede auxílio porque precisa de confessar aos amigos com quem vai a um bar fazer jogos de cultura geral que lhes mentiu em relação ao seu grau académico, um segredo que guarda há 12 anos. Para que a tarefa corra pelo melhor, Fielder contrata atores, recria o bar ao pormenor, arranja maneira do homem saber as respostas do próximo jogo sem este perceber que está a fazer batotice. É um ensaio obsessivo, e que nos dá as primeiras pistas de que a vida pessoal do protagonista se está imiscuir no projeto. No segundo episódio, quando uma mulher sem filhos lhe pede ajuda para treinar como criar uma criança, é já óbvio que esta série é sobre Nathan e a sua jornada pessoal e que tudo ali é uma ficção, uma encenação para chegar, ironicamente, à moral da história oposta: a de que “a vida é melhor com surpresas” e não se pode ensaiar tudo.
“The Rehearsal” é muito interessante como exercício conceptual e como experiência para ver Nathan Fielder a dinamitar, mais uma vez, as fronteiras do que é a comédia. E origina, a espaço, momentos muito bons. Mas nem sempre evita ser autofágico, um daqueles programas que é mais fascinante para o emissor do que para o recetor. Fielder fez um dos programas mais pessoais e desconstruídos da sua já atípica carreira, que lhe deve ter dado um gozo enorme; já eu, admito, às vezes apanhei um bocadinho de seca. Recomenda-se a quem se interessa por este subgénero e pela subversão de regras, mas por vezes é mais um extraordinário exercício académico do que um programa de televisão.