É o caminho natural para qualquer velocista: começa nos 100 ou nos 200 metros, consolida essa posição, pensa depois nos 400 metros. Foi assim, por exemplo, que Michael Johnson se tornou um dos maiores de sempre do atletismo mundial. E há casos também no meio-fundo e no fundo, sempre com o elevador a ser ascendente a nível de distâncias. Depois, existem exceções. Por norma, sem grande sucesso. E as exceções dentro das exceções, com resultados, contam-se pelos dedos de uma mão. Fred Kerley, de 27 anos, tornou-se uma dessas raras situações, com uma viragem na carreira propiciada pela paragem devido à pandemia e por uma aposta de risco que muitos colocaram em causa. No ano passado, em Tóquio, conseguiu sagrar-se vice-campeão olímpico apenas atrás de Marcell Jacobs. Hoje, é campeão mundial dos 100 metros.

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Até esse momento de viragem, Kerley destacava-se sobretudo nos 400 metros. Ganhou a Liga Diamante de 2018 nessa distância, conseguiu uma medalha de bronze nos Mundiais de 2019, foi campeão e vice nas estafetas dos 4x400m dos Mundiais ao Ar Livre e em Pista Coberta. Em 2021, nos Campeonatos Nacionais que apuram para os Jogos Olímpicos, estava inscrito para os 100, 200 e 400 metros mas um inchaço no tornozelo obrigou a rever prioridades até pelas três rondas que teria de fazer nos 400. Mesmo sendo a sua especialidade, mesmo sendo a distância onde detinha a oitava melhor marca de sempre, acabou por ficar apenas pelos 100. Com pouco tempo de trabalho, apurou-se e, com 9,84, só não ficou mesmo com o ouro em Tóquio pela melhor corrida de sempre do transalpino, que bateu o recorde da Europa (9,80).

Com isso, o norte-americano tornou-se apenas o terceiro atleta de sempre a fazer os 100 metros abaixo dos dez segundos, os 200 metros abaixo dos 20 segundos e os 400 metros abaixo dos 44 segundos, algo que só o sul-africano Wayde van Niekerk e o norte-americano Michael Norman tinham alcançado. Algo que, nos primeiros anos de vida, parecia ser um cenário utópico perante as dificuldades que atravessou.

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Nascido e criado em Taylor, uma pequena cidade do Texas, Fred e os irmãos foram viver com a tia, Virginia Kerley, com apenas dois anos. “O meu pai estava preso, a minha mãe foi por caminhos errados na vida. Sem a minha tia não seria um atleta, não sei o que teria sido de mim. Era bebé na altura, não sabia o que se passava à minha volta. A Meme, como lhe chamamos, criou os seus filhos, os filhos do irmão e os filhos da irmã. No total, éramos 13 crianças debaixo do mesmo teto”, explicou numa entrevista em 2019. “Se não fosse por ela, provavelmente não estaria aqui a falar agora. Ela sacrificou a vida dela por mim, pelos meus irmãos, pelas minhas irmãs e pelos meus primos”, destacou após a conquista do título em Eugene.

“Na minha adolescência vi muitos desviarem-se do caminho correto, incluindo familiares e amigos muito próximos. Vi muitos adolescentes superdotados não desenvolverem como deviam. Ainda hoje vejo-os no Instagram e recordo o talento que tinham. Eram muito bons mas de repente, depois de acabarem o ensino secundário, seguiram o mesmo caminho dos irmãos mais velhos. Eu pensava diferente. Desde pequeno que me convenci que não podia ser assim, que não queria acabar como eles. Queria ter estudos, queria viajar pelo mundo, queria ir mais longe. O atletismo permitiu-se isso e foi a minha tia que ajudou em todo esse processo”, acrescentou sobre as complicadas origens. É por isso que, entre as 12 tatuagens que tem (a primeira, um salmo, feita com apenas 12 anos num local sem o mínimo de condições sanitárias), destaca sempre a mais pequena e curta que tem: “Meme”, em homenagem à tia Virgínia: “Mudou a minha vida, fez a minha vida e será sempre a minha força. É por isso que ainda hoje lhe ligo todos os dias”.

Ainda assim, e dentro de um talento inato para o desporto que conciliou com os estudos, o atletismo não foi o seu primeiro amor. Nem sequer o segundo, acrescente-se: ainda antes de entrar na universidade, treinou e jogou futebol americano (a grande perdição) e basquetebol. Contudo, e na antecâmara de escolher a sua faculdade entre os convites que tinha, uma rotura na clavícula mudou todos os planos. Chegou quase por acaso ao atletismo e à velocidade mas foi isso que lhe permitiu tornar-se profissional em 2017.

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“Dissemos que íamos conseguir e conseguimos”, sublinhou na primeira entrevista ainda na pista depois da vitória enquanto o público gritava “USA! USA! USA!”. E conseguimos, no plural, porque pela primeira vez em mais de três décadas os norte-americanos conseguiram fazer um pleno no pódio (algo que a Jamaica também fez mas no feminino com Shelly-Ann Fraser-Pryce a bater Shericka Jackson e a campeã olímpica Elaine Thompson), com Marvin Bracy a ganhar a medalha de prata e Trayvon Bromell a ficar com o bronze – em 1991, em Tóquio, tinham conseguido isso Carl Lewis, Leroy Burrell e Dennis Mitchell. A hipótese de aproximar-se do recorde de Usain Bolt ficou longe, fazendo um tempo melhor nas eliminatórias (9,79) do que na final (9,84), mas a melhor marca pessoal de 9,76 que o coloca como o sétimo mais rápido de sempre permite pelo menos ambicionar com o título olímpico em Paris-2024. Tudo em nome de Meme.