Das epifanias boas que um festival como o Vodafone Paredes de Coura nos dá é o prazer da descoberta. Não se trata de vir às cegas, até porque agora já há playlists de tudo e para tudo, mas antes o de olhar para um cartaz como o desta quinta-feira, cheio de meias linhas coesas, e chegar ao final do dia percebendo que era exatamente isto que queríamos ouvir, sem que o tivéssemos antecipado de uma forma muito racional.
Não é todos os dias que uma coisa destas acontece, até porque o festival, com 28 anos de história, já não é um local de passagem apenas para nomes ditos emergentes. Aqui apresentam-se artistas de peso mundial, um privilégio claro, mas temos que confessar que são dias como o desta quinta-feira que conseguem trazer ao de cima a magia do primeiro beijo, da primeira edição.
De tão certeiro foi o alinhamento, que nem nos atrevemos a abusar das prolepses e é por isso que começamos pelo início, por Yellow Days. O som dengoso deste músico de Manchester realçou as curvas da colina imensa, a mais preenchida em início de tarde desta edição, embora não coincidindo com o dia mais concorrido dos cinco de festival. Um facto que, atentando ao conforto, nos deixou bastante satisfeitos. Enchentes dão fotos bonitas, planos de drone de fazer capa em qualquer rede social, mas são o pesadelo de quem quer saborear de boa música sem ter de estar constantemente a competir pelo metro quadrado.
Fechado este parêntesis, voltemos a Yellow Days. A música que ele nos ofereceu foi um serpentear lo-fi que se entranhou pela soul e pela R&B, que se entranhou pelos nossos corpos como Marvin Gaye faria se ainda estivesse entre nós. Yellow Days não é a voz de Sexual Healing, claro, mas tem a sensualidade no sítio certo, e, neste caso, à hora certa. Love is so sweet, cantou em “It’s Real Love” e os corações de Coura derreteram-se.
Um lapso na escrita transformaria facilmente Coura em coeur, erro romântico que se ajusta a um dia de forte presença francófona. O amor, neste festival, está por todo o lado e contagia. Ao almoço, na vila, Maura-dell, irlandesa a viver em Hamburgo, contava-nos que veio a Paredes de Coura pela primeira vez em 2018. Era fã de Fleet Foxes, nunca os tinha visto e, procurando as datas da tournée de então, esbarrou com o “couraíso”. Pensou, “porque não?” e veio de malas feitas para aquele que foi o seu primeiro festival de Verão de sempre. Os olhos ficaram incrédulos com o que viram, “It’s so beautiful”. Repetiu a dose em 2019 e agora novamente em 2022, já ao lado de Tim, americano por quem se apaixonara logo depois de ter ido embora de Coura. As coisas bonitas deixam sempre um rasto e se há coisa que Paredes de Coura nos ensina é que ninguém sai daqui da mesma forma como entrou.
Um cometa que colidiu com o Alto Minho
Penetrando pelo meio do público esbarrámos com inúmeros adolescentes. Para muitos, esta é a sua estreia aqui. Apanhámos um grupo de Lisboa, nas margens do Taboão, a moldar peças de barro — “fazemos isto porque gostamos” observaram tranquilos – que nos contou que vieram à descoberta. Não podemos deixar de os imaginar de olhos brilhantes postos em The Comet is Coming, descobrindo a força avassaladora do coletivo de Londres, descobrindo-se a eles mesmos através da música.
Shabaka Hutchings comanda o seu saxofone como Neptuno comanda a força das marés. É ele o grande guru deste trio que se move pelo acid jazz, pelo stoner psicadélico e que em setembro nos dará um novo álbum, “Hyper-Dimensional Extension Beam”. O teaser que nos revelaram em palco mostra que a sua veia afro-futurista está prestes a explodir numa eletrónica mais dançante, onde os sintetizadores de Dan Leavers ganham protagonismo e nos põem em transe.
O público respondeu positivamente a este repto e fez levantar muito pó do recinto, libertando uma energia tribal certamente sentida no espaço. Naquele momento houve planetas que se desalinharam e nem precisámos de consultar o mapa astral para o afirmar. Uma força vital como esta não se fica pela esfera terreste.
Recuperando o fôlego, descemos à nossa querida Terra para virar o olhar para o mapa: da Bielorrússia a Paredes de Coura são 3.785 km, 1 dia e 17 horas de viagem de carro. Foi de lá que vieram os Molchat Doma, mas não foram os únicos. À tarde, na praia fluvial do Taboão, havia quem lhes escrevesse cartazes, conterrâneos que aterraram no extremo oposto da Europa, nesta vila onde já se apanha Internet espanhola, sem saber muito bem ao que vinham. “Estamos a gostar muito”, garantiram. Talvez Paredes de Coura se torne moda no país de Lukashenko, como Sixto Rodriguez se tornou na África do Sul, e o inunde com um pouco de amor e humanismo.
Parquet Courts: o ABC de um bom concerto
Se no dia anterior Idles quiseram encenar uma energia maior do que eles próprios, nesta quinta-feira os nova-iorquinos Parquet Courts mostraram aos tipos de Bristol como é que a coisa se faz sem floreados. Dir-nos-ão: são estilos diferentes. Bem verdade. Ainda assim, ambos incendiários e, nestes casos, o melhor a fazer é simplesmente deixar as guitarras falar sem forçar o êxtase. Ele acaba por chegar de forma natural quando a entrega é genuína. A de Parquet Courts saiu sem pressões, parafraseando Samuel. Fizeram poucas paragens entre as músicas, deixaram o público ligado à corrente, passearam de “Light Up Gold” (2013) a “Sympathy for Life” (2021) sem solavancos e mantiveram o anfiteatro de Coura colado ao seu rock explosivo, temperado a funk aqui e ali, durante mais de uma hora.
Ainda vínhamos a sacudir a poeira de Parquet Courts e já os L’éclair perguntavam no palco secundário, “are you ready to boogie?” Claro que sim, mas alguém ali tinha dúvidas? Neste dia os corpos só tiveram que seguir o chamamento da música, nada de complicações, fluidez total. Num admirável perfeccionismo técnico, este quinteto consegue esticar cada faixa para lá do funk, da psicadélica e do afro house, construindo uma narrativa que é uma pangeia sonora. Seguindo os princípios da liberdade jazzística, puseram toda a plateia a dançar, como já o tinham feito há uns meses no Tremor, em São Miguel. Não temos dúvidas que dentro em breve palcos maiores se abrirão para eles. Ofereceram-nos um tema novo, muita festa, “un concertazo”, como alguém disse à nossa beira em galego. O bruaá lançado pelo público na despedida foi soberano e mal sabíamos que vinha aí um ainda mais apoteótico.
Não foi em Turnstile que isso aconteceu, mas os miúdos de Baltimore portaram-se lindamente. Neste seu hardcore encontramos laivos de Pantera e de Rage Against the Machine, só que substituindo a raiva por amor. Brendan Yates disse-nos, a certa altura, que este era o dia com o qual tinha sonhado e, como tal, pediu que revolvêssemos o recinto como se não houvesse amanhã. Abriu-se um mosh pit tal, em semicírculo, que atravessou a plateia de um lado ao outro. Nós, que estávamos mais acima, vimos a colisão a acontecer, uma poeirada no ar mais densa do que as poeiras do Saara. Chamemos a este fenómeno T.L.C. (Turnstile Love Connection), êxito que fechou a atuação com Yates, de lenço verde na cabeça à anos 90, a atirar-nos uma chuva de obrigados (a própria t-shirt que envergava tinha escrito “Thank You”). Obrigado por cuidarem uns dos outros, obrigado por serem vocês mesmos, “vocês têm aqui uma coisa tão bonita”. Com um brilhozinho nos olhos, lá se foi embora para dar a vez à imperatriz da noite, senão mesmo do festival.
L’Imperatrice coroados em Coura
Flore Benguigui é uma front woman por excelência, mas a sua presença não seria a mesma se não se fizesse acompanhar por uma banda de cinco mosqueteiros parisienses que não se ensaiam para fazer a festa. Quantas vezes falámos de amor neste dia? Todas são poucas quando nos pomos a rebobinar o concerto que os L’Imperatrice deram em Paredes de Coura. Entraram vestidos de vermelho, com corações brilhantes ao peito que, durante a atuação, fartaram-se de alternar em mil e uma cores. O público respondeu desenhando os seus próprios corações com as mãos. A faísca da paixão estava acesa e ficou ainda mais forte quando Flore nos dirigiu palavras impecavelmente pronunciadas em português: “Muito obrigada. Nós somos de Paris e é a nossa primeira vez em Portugal”. Ela nem queria acreditar que isto lhes estava a acontecer, depois de terem sido cancelados e reprogramados duas vezes. Nós também não queríamos acreditar no banho de pop, disco, funk e eletrónica que eles nos deram, provocando uma loucura pagã tal que daria um excelso quadro de Matisse. Quem por infortúnio não esteve esta quinta-feira no festival, poderá agarrar-se às memórias de 2018, de Jungle, para fantasiar um pouco sobre a atuação que os L’Imperatrice conduziram nesta edição.
Começaram em inglês, com “Off to the Side”, passaram por “Hématome”, convocaram a imensa força feminina em “Peur des filles”, espalharam sensualidade com “Matahari” – Don’t look into her eyes / or it will make you crazy – e daí aumentaram a líbido coletiva com as suas “Agitations Tropicales”, cheias de cortesãs e criaturas astrais. “Ai, eu não os aguento, caralho”, berrou Alice, de seu nome, ao nosso lado, agarrando as mãos da amiga que lhe dizia, “aproveita, aproveita”. Alice aproveitou, todos nós aproveitámos e, na reta final, Paredes de Coura uivou numa ovação como já há muito não ouvíamos neste recinto – terá sido LCD Soundsystem, em 2016, ou Arcade Fire, em 2018, a levar com uma parecida? Foram mais de três minutos de berros e aplausos com Flore de mãos na cara, no cabelo, Charles, Tom, David, Hagni, Achille incrédulos com o que viam. Foi uma explosão de amor total, um momento que ficará para a memória do festival, dos L’Imperatrice e de todos quanto testemunharam este concerto.
A festa continuou no palco secundário com Nu Genea Live Band e John Talabot noite fora. Continuará também hoje com Arlo Parks, Ty Segall, ARP Frique & Family e The Blaze. A expectativa está bem alta, veremos o que este alinhamento nos reserva.