Há pouco tempo estreou-se entre nós “Alcarràs”, longa-metragem de Carla Simón sobre uma família que não aceita o destino, quando a vida, o trabalho, a terra e o horizonte de gerações estão prestes a desaparecer. A história passa-se no verão, durante a colheita de pêssegos em árvores que em breve estarão destruídas. Fala de um presente como se já fosse um passado, a terra que o espectador está a ver, as rotinas, os hábitos, a agricultura, tudo está em risco.
Regressamos aqui a “Alcarràs” não tanto por representar um momento específico do cinema espanhol, de novos realizadores e da força que trazem, mas sobretudo pela ideia do filme: a de uma atualidade que parece estar a deixar de existir no preciso momento em que falamos dela e em que a vivemos. “Libertad”, a primeira longa-metragem de Clara Roquet, catalã como Carla Simón, também acontece no verão e é uma história de crescimento, um processo de transição para a idade adulta que se conta nas entrelinhas, quando uma jovem parece deparar-se pela primeira vez com a ideia de privilégio, do que são classes e diferenças sociais e daquilo que essas diferenças implicam na vida quotidiana.
A história conta-se durante umas férias de verão de uma família. Saem da cidade para passar, como habitual (presume-se), essas semanas em casa da avó, que sofre de Alzheimer e tem a companhia constante de uma criada, Rosana (Carol Hurtado). A família, percebe-se, está a autodestruir-se. Nora (Maria Morera), a filha mais velha, está a entrar na adolescência e despreza a mãe, Teresa (Nora Navas), que vive nos suspiros da decadência da avó e o medo de contar às filhas a verdade: que ela e o pai se estão a separar. Enquanto isso não acontece, vai tendo casos. Nora sabe.
[o trailer de “Libertad”:]
É neste contexto de férias algo indesejadas que Nora tem contacto com a sua fuga para aqueles dias. Libertad, a filha de Rosana, é tão diferente de Nora que transmite uma ideia de vida nova e admirável, algo fascinante por descobrir. O que Nora parece não reconhecer é que Libertad não é livre como ela pensa que é, só é pobre, diferente. E diferente de todos os amigos com quem convive no dia a dia. Por tudo isso, é também um escape.
Clara Roquet faz um bom trabalho em mostrar a envolvência entre as duas personagens, brinca com a ideia de “espírito livre” e o espectador percebe que essa natureza apenas existe na cabeça de Nora e, por outras razões, na de Libertad. Esta acaba por revelar-se como uma uma ferramenta para Nora fazer uma viagem interior.
Libertad quer fugir daquela vida. Daquela casa que a prende. Da escravatura não assumida das “senhoras lá da casa”, da vida de serventia que a mãe tem. De servir os tais privilegiados. Mas também quer fugir da vida por causa da mãe, quer agir como ela agiu no passado. Contudo, a vida que procura fora dali não é muito diferente daquela que pode ter: trabalhar em bares, hotéis, enfim, continuar a servir, mesmo que de um modo diferente.
Em simultâneo, Nora quer fugir com ela. Não numa ideia de romance, mas porque quer escapar à vida que tem, abraçar a idealização que faz de Libertad, o seu — presume — “espírito livre”. O que para Libertad é um plano A, uma fuga, para Nora não passa de uma luta contra a mãe, uma forma de chatear alguém. Um privilégio.
O que Clara Roquet conta – e bem – ao longo de “Libertad” é a armadilha da bolha. De alguém com privilégios não se sentir como tal, porque não convive com outros, não conhece outras realidade ou porque as realidades que conhece também estão acima de si. Há um momento raro, talvez o melhor de todo o filme, em que Libertad refere-se a Nora como uma privilegiada e esta recusa essa ideia, mencionando aquilo que a família tem, como se não fosse nada. Mas esse nada, para ela, é tudo o que Libertad ambiciona. Nora sente-se ofendida, humilhada e, obviamente, fica amuada. Como boa adolescente privilegiada.
Por isso, em “Libertad” não há bem luta de classes, mas há a perceção das mesmas. Pela história de Libertad e Nora ficamos a saber o lugar de cada uma delas. E o que a cada uma espera. A Libertad calha-lhe tudo menos a liberdade e a escada social parece estar mais longe do que perto, seja qual for a decisão que tome.
Contudo, “Libertad” tem alguns problemas de primeira obra. Roquet concentra-se muito nos mundos opostos das duas protagonistas, por vezes mais na ideia de mundo do que na sua concretização. A apresentação da família de Nora tem um propósito para a personagem, mas fora dela, tem relativo interesse: a questão do Alzheimer da avó, por exemplo, pouco ou nenhum afeto cria com o espectador. É algo que corre pelo filme, mais como parte de cenário do que propriamente de emoção. Em última instância, faz das restantes personagens — além do duo principal — meros bonecos que servem um propósito.
As boas intenções estão lá. O retrato da adolescência e dos opostos entre as protagonistas, sobretudo na forma como se entendem uma à outra, chegam-nos com toda a sensibilidade. O final é ótimo a realçar, mais uma vez, o privilégio, até no impacto do verão, diferente para cada uma das protagonistas. Para Libertad, provavelmente, teria tudo acontecido da mesma forma. Deixar isso bem evidente, como Roquet faz na última cena da personagem, revela aquela bendita coragem das primeiras obras. Será curioso ver o que fará no futuro.