Um discurso sempre ao ataque. Do início, ao criticar a “cumplicidade” do Governo com a “escalada da guerra”, ao fim, quando quase colocou o PS no saco dos “projetos reacionários”, Jerónimo de Sousa fechou esta Festa do Avante! com um lema na cabeça: a melhor defesa é o ataque. E foi assim que quis defender o PCP, em tempos de dificuldade.
O ambiente ajudou: ativo e bem audível, o público foi pontuando o discurso com gritos — “paz sim, guerra não” — e apupos (aos Estados Unidos, ao PS e a IL e Chega). E o primeiro apupo chegou logo quando Jerónimo lançou uma acusação séria ao Governo de António Costa: a “escalada de guerra”, tal como a “espiral de sanções”, contam com “a cumplicidade do Governo português”.
E foi mais longe: “A realidade está a demonstrar quem tudo faz para que a guerra não termine” — e não é a Rússia, que está a ser alvo de um “cerco”, mas quem ganha dinheiro com armas ou acumula lucros na atual situação económica. À invasão da Rússia só houve, aliás, uma referência subtil: o PCP tem condenado “oportunamente” os “sucessivos agravamentos” na “situação da Ucrânia”.
“Razão”, disse Jerónimo, “tem o PCP ao estar desde a primeira hora do lado da paz e contra a guerra”.
Com o público a acompanhar efusivamente o discurso, o líder correspondeu: desde logo, ao garantir que a festa foi, este ano, um êxito apesar das “reiteradas campanhas de manipulação e mentira, pressões e desprezíveis chantagens”, numa referência às críticas de que o partido tem sido alvo por causa da sua posição quanto à guerra na Ucrânia.
E aproveitou desde logo para deixar um agradecimento aos artistas que, mesmo sendo criticados por isso, aceitaram fazer parte do cartaz deste ano: com “posicionamentos muito diversos”, disse Jerónimo, aqui vieram “exercer a sua atividade profissional”, em “liberdade”.
PS ao lado dos “reacionários”
Depois, passou às críticas, agora internas, ao Governo — quase fazendo esquecer que ainda há uns meses negociava com o Executivo e sustentava a equipa de António Costa. Desta vez, ao criticar o Governo pela falta de medidas suficientes para combater os efeitos da inflação, Jerónimo não hesitou em meter o Executivo de Costa no mesmo saco da direita e das “forças reacionárias”, com a suas “medidas falsas e hipócritas de assistencialismo”.
Mas os reparos ao Executivo não ficaram por aí e foram particularmente fortes quanto à Saúde, porque “não é com demissões de ministros que se salva o SNS”, argumentou Jerónimo — é com mais investimento e mudanças nas carreiras, o que não acontece graças à política “prosseguida anos e anos por PS, PSD e CDS”.
Apesar de nos últimos anos o Executivo ter negociado com o PCP, a geringonça parece totalmente apagada da memória, e da história, comunista: a única referência, não explícita, foi às conquistas que o partido conseguiu na altura, como a redução do preço dos passes e os primeiros passos para as creches gratuitas (motivo de aplausos entusiásticos da audiência).
De resto, o PS só mereceu críticas arrasadoras. O discurso não terminaria sem Jerónimo descrever o PS como uma “força da política de direita”, improvisar umas quantas críticas que não estavam escritas (sobretudo sobre a Agenda Digna do Trabalho proposta por António Costa) e prometer que o PCP será “força de oposição ao PS e aos projetos reacionários”.
Do lado do PCP, já sem via negocial com o Governo, ficaram propostas em várias frentes, do aumento dos salários à fixação de preços máximos para bens essenciais e atualização das rendas, IVA da energia a 6%, investimento no SNS ou tributação dos lucros dos grandes grupos económicos.
O improviso com Cunhal para motivar as bases
Numa fase em que os comunistas fazem um discurso cada vez mais fechado no partido, a apelar às suas bases, o líder fez questão de puxar pelo sentimento de união — sobretudo, perante as críticas ou injustiças vindas de fora — para dentro do PCP. Lembrando, primeiro, que se avizinha a conferência nacional marcada para novembro (uma raridade na história do PCP). Depois, frisando vezes sem conta que o PCP “sabe quem é” e que é um partido “a que dá orgulho pertencer”.
Não por acaso, em tempos difíceis para os comunistas, Jerónimo fez um último improviso a fechar o discurso para motivar os militantes — e para isso quis a ajuda de Cunhal. Parafraseando o “querido camarada” e antigo líder do PCP, Jerónimo atirou: “Dizia ele que o sonho está sempre mais avançado do que a realidade. É verdade, mas com a nossa militância passará a realidade”. Se o objetivo era motivar, a frase funcionou — pelo menos, dentro das portas da Quinta da Atalaia.