No seu livro “A Furiosa Paixão pelo Tangível” (1987), Vasco Graça Moura tem um poema, “burlesca”, escrito na sequência de uma ida à Cinemateca para ver o filme “Nome: Carmen”, de Jean-Luc Godard. O longo texto é como um alfinete certeiramente espetado na opaca flatulência godardiana, onde Graça Moura escreve a certa altura: “o segundo problema foi o de perceber o filme mas isso já é costume/via-se volta e meia o mar a resfolegar a inflar a marulhar o seu [volume/com umas ondas muito recorrentes muito espumantes como quando se [bate uma omelete/com ovos de vanguarda e tem de haver alguém que faça o frete e os [interprete.”
Este poema saborosamente satírico de Vasco Graça Moura decerto pareceria sacrílego a Jacques Mandelbaum, crítico de cinema do “Le Monde”, que no seu longo obituário de Godard neste jornal, escreve a certa altura, a propósito de “O Livro de Imagem”, o último filme do realizador franco-suíço, que morreu hoje, aos 91 anos: “mais do que nunca, a voz e as palavras de Godard assemelham-se às de Deus no Monte Sinai.” De Deus, nada mais nada menos. Uma frase que deixa bem claro a altura do estatuto de que o autor de “O Acossado” e “Masculino Feminino” gozava entre os seus maiores e mais indefectíveis devotos.
[Veja o “trailer” de “O Acossado”:]
Crítico, realizador, teórico e luminária intelectual, Jean-Luc Godard revelou-se com “O Acossado” (1960), filme que corporizava o espírito da Nouvelle Vague e a sua vontade de levar tudo raso à frente no cinema francês – e no cinema “tout court” – e fazer algo de totalmente novo e nunca visto. Esta história de amor entre um jovem malfeitor (Jean-Paul Belmondo) e uma estudante americana em Paris (Jean Seberg) é um devastador tiro de morteiro estético, formal e narrativo, com o qual, da montagem à escolha e direcção de actores, da estilística ao arejamento visual e dramático, Godard parece refundar o cinema, anunciando o advento de uma nova geração de realizadores (que rapidamente se dispersariam nas suas várias individualidades) e impondo a sua revolucionária, provocatória e influentíssima idiossincrasia cinematográfica, escorada numa cinefilia apaixonada e numa erudição franco-atiradora, que não deixaria de testar, aprofundar e radicalizar, no gesto como no discurso, nos seus filmes seguintes.
[Veja o “trailer” de “Uma Mulher é uma Mulher”:]
É na agitadíssima década de 60, que o ímpeto e a pluralidade criativa da Nouvelle Vague e a impertinência anti-convencional de “O Acossado” já anunciavam , que Jean-Luc Godard assina alguns dos seus melhores filmes: “Uma Mulher é Uma Mulher” (1961), com Anna Karina, a sua primeira musa, “Viver a Sua Vida” (1962), “O Soldado das Sombras” (1963), “O Desprezo” (1963), “Bando à Parte” (1964), “A Mulher Casada” (1964), “Pedro, o Louco” (1965), “Masculino Feminino” (1966) ou “Duas ou Três Coisas que Sei Dela” (1967). Mesmo nos mais exasperantes, desarrumados ou desconcertantes, há sempre algo de inovador, de inesperado, de poético, de energicamente insolente e de arrebatadoramente brilhante, bem como de profundamente observado sobre as relações emocionais e sexuais entre os homens e as mulheres, os problemas sociais e políticos da época, e também sobre o próprio cinema. Tudo entrecortado de digressões, citações, aforismos e disjunções visuais, sonoras e musicais, e de referências a outras artes.
[Veja o “trailer” de “Pedro, o Louco”:]
No final dessa década, a crescente politização do realizador vai encarrilar o seu cinema na via militante. Godard passa a andar de braço dado, na vida e nos filmes, com o comunismo de expressão maoísta e a extrema-esquerda mais delirante, a participar nos acontecimentos de Maio de 68 com a câmara e pela acção (encabeça o boicote dos realizadores ao Festival de Cannes desse ano, e manifesta-se contra a demissão de Henri Langlois da Cinemateca), e a colaborar em filmes colectivos revolucionários e panfletários. Incompatibiliza-se com amigos e colaboradores, a sua relação com a actriz Anne Wiazemsky (“La Chinoise”, de 1967) termina, a maioria dos filmes desta época quase não são vistos, e a desilusão com a utopia esquerdista expressa-se em “Tudo Vai Bem” (1972), com Yves Montand e Jane Fonda.
[Veja o “trailer” de “La Chinoise”:]
Uma das principais características de Jean-Luc Godard era a capacidade de se auto-reciclar, o que vai acontecer de novo nos anos 80, agora ao lado e com a colaboração de Anne-Marie Miéville. Godard volta a rodar longas-metragens, com a participação de alguns dos maiores nomes do cinema francês (Delon, Dutronc, Huppert, etc.), trazendo da década de 70 algumas experiências na televisão. E em especial o interesse pelas possibilidades expressivas do vídeo, que vai desenvolver cada vez mais, antecipando e influenciando a vídeo arte, e aproveitar para as suas experimentações, reflexões e ensaios sobre o cinema, a sua essência, o seu papel socio-político, a sua relação com a história do século XX e as outras artes, o seu futuro e possível fim, que desembocarão no colossal “Histoire(s) du Cinéma” (1998).
[Veja um excerto de “Histoire(s) du Cinéma”:]
Entre tudo tudo isto, a linguagem godardiana acabou por cristalizar numa ortodoxia própria, numa paleta de tiques, expedientes, estratagemas, afectações, citações e reiterações, numa rotina pseudo-vanguardista e “cerebral” com acompanhamento de preocupação política (da guerra nos Balcãs à situação na Palestina, passando pela reunificação alemã). Os seus filmes, de “Paixão” (1982) a “Nova Vaga” (1990), passando por “Nome: Carmen” (1983) e o artificialmente “escandaloso” “Eu Vos Saúdo Maria” (1985) estacionaram numa obscuridade estetizante, arrevesada e arbitrária, cerradamente cifrados, parecendo feitos apenas para um cada vez mais pequeno grupo de eleitos capazes de os descodificar e lhes dar sentido. Mas há sempre quem “faça o frete e os interprete”, como escreveu Vasco Graça Moura no citado poema.
[Veja um excerto de “Nome: Carmen”:]
Instalado na sua casa na Suíça, afastado da cena pública e artística, Jean-Luc Godard transformou-se para muitos numa espécie de bonzo distante, incontactável e imprescrutável, embora sempre visionário, inovador e influente. Mas como se pode ver no banal e obviamente alegórico “Filme Socialismo” (2010), ou na sua última realização, “O Livro de Imagem” (2018), com as suas repetitivas e entediantes colagens de imagens, sons, conceitos, referências e vagos e sentenciosos comentários à situação mundial, o outrora revolucionário, surpreendente e entusiasmante Godard acabou por se tornar no académico de si mesmo.