Morreu esta terça-feira aos 91 anos de idade o cineasta francês Jean-Luc Godard. O realizador morreu de suicídio assistido na Suíça, país onde a prática é legal.
A informação foi primeiro avançada pelo Libération, que cita fontes próximas do cineasta. O mesmo Libération que citou o português Manoel de Oliveira para descrever a obra do realizador franco-suíço: “O seu cinema é a saturação de signos magníficos que se banham na luz da sua falta de explicação.”
Ao jornal norte-americano The New York Times, o conselheiro jurídico de Godard, Patrick Jeanneret, explicou que o cineasta sofria de “múltiplas patologias”, motivo que o levou a buscar o suicídio assistido. “Ele não conseguia viver como nós, por isso decidiu, com grande lucidez, como teve durante toda a sua vida, dizer ‘Já chega'”, acrescentou o responsável.
Jeanneret disse ao mesmo jornal que Godard tinha já pensado longamente sobre a possibilidade e que pretendia morrer com dignidade. “Foi exatamente isso que ele fez.”
Godard há muito que inscreveu o seu nome na História do cinema, ele que foi um dos maiores mestres da arte em todo o mundo e uma figura chave da Nouvelle Vague, movimento que revolucionou o cinema no final dos anos 1950 e 1960. Ao mesmo tempo, a inquietação que o moveu há décadas foi a mesma que, nos anos mais recentes, o levou a explorar as possibilidades do digital e a satisfazer uma permanente necessidade criativa, conquistando sempre novas gerações de seguidores.
Nascido a 3 de dezembro de 1930 em Paris, Godard cresceu e estudou em Nyon, na Suíça. Regressou à capital francesa depois de terminar os estudos em 1949 e foi aí que, através dos cineclubes parisienses, descobriu o ambiente que haveria de fazer germinar uma paixão pelo cinema profunda ao ponto de o levar para lá do ponto de espectador e cinéfilo. O primeiro passo foi a crítica de cinema, à qual se dedicou na companhia de André Bazin (que haveria de fundar os famosos Cahiers du Cinéma) e de outros que seriam fundamentais na construção da Nouvelle Vague e da revolução que a partir de Paris haveria de contaminar o cinema mundial: François Truffaut, Éric Rohmer, Jacques Rivette ou Claude Chabrol, todos eles críticos, todos eles insatisfeitos, todos eles à procura de protagonismo fundado na vontade de fazer mais e fazer novo.
Dentro deste grupo, foi Truffaut que ganhou papel fulcral no caminho de Goddard como cineasta. Depois de uma série de curtas, Jean-Luc, decidido e convencido, pediu licença a François para trabalhar a ideia deste: a história aparentemente pouco elaborada de um bandido perseguido e de uma mulher que nele encontra a razão de tudo. “O Acossado” foi rodado em 1959, fruto de meios técnicos pouco dedicados e de um guião muito baseado na escrita do momento. Seria o brilhante ponto de partida para um percurso fundamental, prémio de Melhor Realizador no festival de Berlim do ano seguinte, fenómeno de popularidade e livro de estilo para Goddard começar a construir uma linguagem em perpétua atualização: a montagem assente numa visão instintiva do cinema, a importância da não-narrativa nas histórias que filmava, o protagonismo dos espaços, dos sítios e locais verdadeiros e o papel que tais geografias tinham entre as personagens, os diálogos (tão importantes como desafiantes).
Foi também ponto de partida para a criação de um mito na pele de Jean-Paul Belmondo, que em breve seria uma das maiores estrelas do cinema francês. Aliás, a transformação de atores em algo maior do que protagonistas aconteceu com Anna Karina (com quem haveria de casar, de quem haveria de se separar pouco depois), aconteceu com Michel Piccoli ou com Brigitte Bardot. Entre todos eles, a contínua criação de uma linha ténue entre verdade e ficção, a mesma que o levou a proferir uma das frases que mais vezes viu citada: “O cinema é a verdade a 24 imagens por segundo”.
Essa atenção à verdade fez também com que Godard se tornasse político na obra que assinou. Numa época plena de convulsões políticas e sociais, trabalhou com o russo Dziga Vertov ou o marxista Jean-Gorin, apoiou os movimentos estudantis de 1968 e chegou a fazer parte do grupo que suspendeu o festival de Cannes nesse mesmo ano. Mas a realidade também se cruzou com o cineasta na linha de continuidade que traçava entre as mulheres que filmava e a vida pessoal que construía e sucessivamente transformava: com Anne Wiazemsky (protagonista de “O Maoísta”, de 1967), com a realizadora Anne-Marie Miéville, que foi sua colaboradora.
Foi na década de 60, início dos anos 70, que Godard encontrou o seu período criativo mais desafiante e influente. Ao mesmo temporque a imagem ganhava um papel que nunca tinha tido até então, em simultâneo com o crescimento de uma cultura popular mediática e tentacular, Godard criava a sua arte, manipulava a imagem de acordo com os seus preceitos, observando, transformando e moldando. Depois, nos anos que se seguiram, entre as décadas de 80 e 90, o seu nome esteve sempre mais associado a um tempo ido, não perdendo a sua obra, contudo, o carácter reformador e visionário que ainda hoje mantém.
No início do século XX teve um ressurgimento, nos olhares de quem o descobriu (ou redescobriu), mas também através da própria obra. Com “Adeus à Linguagem” (de 2014) e “Filme Socialismo” (anterior, de 2010), por exemplo, reconquistou espaço, não em jeito de reconhecimento da mestria de outros tempos, mas enquanto justa e merecida atenção face a uma obra que recusou parar, que não quis olhar para trás como movimento inevitável. Foi também em 2010 que lhe foi atribuído o Óscar honorário, numa cerimónia à qual, previsivelmente, Godard falhou. Em 2018, o documentário “O Livro de Imagem” valeu-lhe ainda uma Palma de Ouro especial no festival de Cannes.