O Código Penal de 1982 cumpre esta sexta-feira 40 anos desde que foi publicado em Diário da República, com o advogado e especialista em Direito Penal Paulo Saragoça da Matta a destacar o seu cariz humanista e progressista.

Em entrevista à Lusa sobre as quatro décadas de existência deste Código Penal, que começou a ser preparado pelo professor catedrático Eduardo Correia, da Universidade de Coimbra, na primeira metade da década de 60 do século XX, Saragoça da Matta considerou que o pensamento jurídico-penal português “sempre andou à frente da sociedade” nacional e até internacional, dando como exemplo a abolição da pena de morte ou o fim dos crimes associados a comportamentos sociais da vida íntima, como a homossexualidade.

A sociedade estaria preparada em 1965 para a aprovação deste código? Diria que estaria muito próxima disso, porque o Estado Novo já não estava com a pujança que tinha tido nas décadas de 30, 40 e 50. Se seria fácil implementá-lo? Não, não seria. Portanto, quando há a transição para a democracia tornou-se impossível não adequar a legislação penal à nova mundividência constitucional. Os ventos dos novos tempos começaram na área penal antes da área constitucional ou política”, afirmou.

Segundo o penalista, apesar dos elogios à época provenientes de especialistas internacionais, o projeto inicial não foi inteiramente consensual, por existirem também autores portugueses que entendiam que “cortava com a tradição histórico-cultural portuguesa em termos jurídicos”. Em causa estava um diploma “fora do seu tempo” e que precisou também de quase 20 anos e de estabilidade para a sua aprovação, face às “convulsões políticas”.

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“O Código Penal do século XIX tinha uma estrutura muito mais repressiva do que este. Daí a visão humanista, que se vê nas penas admissíveis, no desaparecimento da dicotomia entre prisão correcional e prisão maior, na introdução de penas alternativas à pena de prisão, na criação de regimes diferentes para inimputáveis, imputáveis perigosos e jovens delinquentes até 21 anos… tudo isso são manifestações do caráter humanista do Código [de 1982]”, notou.

Sublinhando a estruturação desta obra sobre o princípio da culpa concreta, algo que o advogado vincou que, então, “não era evidente” para diversos sistemas jurídicos nos quais se discutia se a finalidade de prevenção geral é que devia suportar a pena, Paulo Saragoça da Matta apontou a conceção de 1982 como “uma manifestação clara de que o Estado quis afirmar o princípio da dignidade da pessoa e o princípio do Estado democrático de Direito”.

“Olhando para o índice, vê-se também que houve uma revolução igual à de Copérnico, porque os códigos anteriores começavam por punir crimes cometidos contra o Estado. No novo Código Penal há uma inversão que põe o Homem no centro do problema e o Homem como primeira preocupação“, referiu, reforçando: “Esta revolução em que se coloca o Homem no centro do problema é talvez a marca mais brutal e evidente da novidade do Código”.

Entre as principais características introduzidas em 1982 pelo novo Código Penal esteve “uma diminuição acentuada das molduras das penas”. Na visão de Saragoça da Matta, esse era o “caminho certo e estava na linha vários estudos internacionais que demonstram que não há um efeito direto entre a dimensão da pena e os fins que a pena visa atingir”, mas defendeu que as últimas duas décadas vieram colocar em risco esse paradigma.

“A partir de 1997 ou 1998 a lógica é sempre de punir mais, não só criando novos tipos penais, mas também dizendo que a pena deve ser maior — contra tudo o que são os estudos científicos sobre a matéria. Estes anos do século XXI têm sido de inflexão em relação à filosofia de base do Código, aumentando as medidas das penas, reduzindo as possibilidades de substituição da pena, de suspensão provisória do processo e da possibilidade dos regimes especiais”, criticou.

Uma crítica que estendeu às mais recentes revisões do Código Penal, descrevendo-as como “avulsas, impensadas, mal preparadas e motivadas por casos concretos”. Nesse sentido, Saragoça da Matta admitiu que o caráter cirúrgico das alterações desvirtuou alguns princípios que nortearam a elaboração do texto original, mas sem comprometer o equilíbrio global de uma obra que, na sua ótica, influenciou outros países, como Espanha ou Alemanha.

“A legislação penal e processual penal portuguesa até ao ano 2000, inequivocamente, foi sempre uma das legislações de ponta no mundo. As maiores reformas que foram feitas no século XXI degradaram, na sua maioria, a qualidade da legislação que tínhamos”, defendeu, deixando um voto para o futuro: “Que o Código Penal de 1982 consiga sobreviver aos próximos 40 anos sem ser absolutamente desvirtuado por intervenções de má qualidade, inspiradas por casos concretos ou por extremismos populistas”.

O Código Penal de 1982 foi promulgado no dia 10 de setembro pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes, entrando em vigor no primeiro dia do ano seguinte.