Há quase 30 anos, Maria Mota recebeu um fígado novo numa cirurgia realizada no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, que a salvou da condenação à morte ditada por uma cirrose biliar primária.
A história foi contada à agência Lusa pela filha da doente, Rosa Mota, no dia em que se assinalam os 30 anos do primeiro transplante de fígado em Portugal, realizado por uma equipa liderada pelo cirurgião João Pena da qual fazia parte, entre outros especialistas, o cirurgião Eduardo Barroso.
Prestes a completar 90 anos no dia 14 de novembro, Maria Mota foi operada com sucesso aos 59 anos. Era a primeira doente na lista de espera para transplante hepático, mas como “o fígado tem um tempo de duração” tiveram que chamar outra doente que morava em Lisboa, mais perto do hospital, para “não se perder o órgão”, contou Rosa Mota.
Após o transplante, Maria Mota tem feito uma vida normal e “está bem”. Não conseguiu dar o seu testemunho à Lusa porque partiu a cabeça numa queda há três anos que lhe causou dificuldades na fala.
Sempre nos ajudou, foi sempre uma pessoa muito forte”, afirmou Rosa Mota, que se lembra “muito bem” de quando a mãe foi operada, numa época em que o transplante hepático estava a começar em Portugal.
Antes, esta operação só se fazia no estrangeiro, mas o valor a pagar era muito elevado. Rosa Mota chegou a ponderar vender a casa para poder pagar a cirurgia, mas o programa de transplantação arrancou entretanto.
Rosa Mota confessou que teve mais medo do que a mãe da cirurgia: “Ela estava condenada a morrer. Tinha uma cirrose biliar primária, perdia muito sangue” e, portanto, “estava muito otimista porque sabia que morria se não o fizesse”.
O caso de Maria Mota é recordado com alegria por Eduardo Barroso: “Tenho um enorme carinho por ela. Era seguida pela professora Estela Monteiro, uma pioneira da hepatologia” que acreditou na realização do transplante hepático quando muita gente não acreditava.
Eduardo Barroso começou a trabalhar com o cirurgião João Pena, mas a sua ideia era diferente. Queria aproveitar o transplante hepático para criar um grande centro que tratasse não só das doenças do fígado que precisassem de transplante, mas também outras doenças fora o transplante, o que se tornou uma realidade no Curry Cabral, integrado no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.
O especialista contou que João Pena o mandou, em 1984, para Cambridge, onde o especialista tinha estado para aprender o transplante hepático.
Estive lá dois anos, nasceu-me lá um filho. Tive que vender o carro para sobreviver porque não tive apoios especiais. Ou seja, continuaram a pagar-me o ordenado no hospital e tive uma bolsa que só dava para pagar a renda de casa”, recordou, com entusiasmo.
Disse que foi uma “opção concreta” para poder pensar e sonhar com o Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação que evoluiu de tal forma que é esta sexta-feira “reconhecido na Europa e até no mundo”.
Comparando com o que existia há 30 anos, comentou, com graça: “É comparar um Fiat 600 em segunda mão com um Rolls Royce novo”.
Após mais de 2.500 transplantes realizados, mais de 5.000 cirurgias do fígado e muitas cirurgias do pâncreas, afirmou, “é evidente que os profissionais têm muito maior experiência e muito mais qualidade que tínhamos há 30 anos”.
“Foi uma luta muito bonita, porque foi uma luta de sucesso”, resumiu Eduardo Barroso, que dirigiu o centro até à sua reforma em 2018 e que passou a ter o seu nome.
Eduardo Barroso disponível para partilhar experiência no SNS para reter profissionais
O cirurgião Eduardo Barroso defendeu que a melhor forma de reter os profissionais no Serviço Nacional de Saúde é através do empenho na organização dos serviços, mostrando-se disponível para partilhar a sua experiência de 47 anos no SNS.
Tenho 73 anos e felizmente a minha cabeça ainda não está senil e, portanto, estou a oferecer o meu ‘know-how’ de 47 anos do Serviço Nacional de Saúde para poder, se quiserem, colaborar e explicar como é com o empenho que se faz isto”, disse em entrevista à agência Lusa, a propósito dos 30 anos do primeiro transplante hepático em Portugal.
O especialista defendeu que a modernização e a inovação são fundamentais para reter os profissionais, observando, contudo, que os vencimentos dos médicos e dos enfermeiros não são os adequados.
“Mas se vamos pensar que é só através do dinheiro que vamos conseguir competir com a [medicina] privada isso é impossível”, porque o que pagam a especialistas de renome não é possível o SNS pagar, “mas é possível melhorar muito”, defendeu.