Entra-se em “The Bear” ao engano. Um resumo nervoso do primeiro episódio pode aliciar uns quantos e assustar muitos outros. Se não, vejamos: há um acordar violento numa cozinha; há dívidas acumuladas e pouco dinheiro para as pagar; uma ajudante nova (Sydney Adamu, interpretada por Ayo Edebiri) apresenta-se ao serviço e tem de explicar o que é a UPS, porque Carmy (interpretado por Jeremy Allen White) está a uma velocidade tão estonteante que nem pondera que UPS é a UPS e não um restaurante; aparece uma mensagem nas redes sociais que anuncia um torneio num jogo de arcada de nicho, uma transação de Levi’s raras por carne; e há uma longa argumentação sobre a importância de manter o esparguete no menu. Repetimos: isto é um pouco do primeiro episódio de “The Bear”, uma das séries sensação do verão passado cujos oito episódios da primeira temporada chegam, finalmente, ao Disney+, esta quarta-feira, 5 de outubro.
Quem vos escreve já viu este episódio três vezes. Não porque seja assim tão difícil de acompanhar – é e não é, depende –, mas porque é uma delícia perceber todas as mensagens que são enviadas naquela abertura frenética que, conforme o tempo passa, vai parecendo tão desproporcionada (mas bela, ao mesmo tempo). Mas há uma razão concreta para rever o mesmo episódio: tentar perceber o porquê da necessidade de tantas mensagens – por vezes contraditórias – em tão pouco espaço de tempo. “The Bear” parece querer entrar com estofo e arcaboiço no mundo da alta cozinha. Mas rapidamente se percebe que tudo se passa numa casa de sanduíches. Num negócio pequeno, familiar.
[o trailer de “The Bear”:]
É percetível neste primeiro episódio que Carmy vem de outro lugar. Nos episódios seguintes compreende-se que há um trauma. São sequelas da passagem por alguns restaurantes de topo, experiências que levam o protagonista a viver em constante estado de alerta, a uma velocidade que a própria câmara parece não conseguir acompanhar. Mas o que leva a um reputado jovem chef a abandonar a carreira na haut cuisine para voltar às raízes, ao negócio familiar? Christopher Storer, o criador da série (que tem mãos, por exemplo, na excelente “Ramy”, disponível na HBO Max) faz a transição com mestria: leva a pressão de um mundo muito particular – o das estrelas Michelin — para outro, também ele cheio de exigências: o de um restaurante pequeno, que tem de sobreviver ao dia-a-dia.
O que o primeiro episódio nos diz – e bem – é que os dois universos não estão assim tão distantes. E Carmy carrega bem todos os pesos e medidas: se por um lado é o tipo que aparece a querer renovar tudo, com a cegueira de quem não conhece o negócio e os seus clientes, por outro é o justiceiro que quer que toda a gente se trate por chef, como sinal de respeito – e igualdade –, num ambiente onde a hierarquia costuma dominar. E, nisto tudo, subentende-se que o negócio começou a acumular dívidas após Carmy ter chegado e que há alguém nos bastidores que realmente gere o restaurante, Richie (Ebon Moss-Bachrach). Ou assim parece.
“The Bear” não é um acontecimento de falsas aparências, antes uma terapia de choque em volta do funcionamento de uma cozinha e de toda a operação que a rodeia — a gestão de um restaurante local, com história, que tem um passado recente de declínio. Esse passado está ligado ao irmão de Carmy, Michael, que se suicidou e deixou o negócio nas mãos de quem poderia confiar mais. Carmy, que existe para fazer da cozinha a sua vida, parece atravessar constantemente um estado de stress pós-traumático, enquanto processa o que se passou com o irmão. E enquanto isso acontece, o protagonista tenta mudar o restaurante por dentro, com a ajuda de tudo o que foi aprendendo. Contudo, “The Bear” não acontece na expectativa de “experiência para ver se resulta” e, sim, na naturalidade da sua própria situação.
O ritmo alucinante do primeiro episódio (para não dizer violento e surreal) eventualmente dilui-se ao longo dos episódios seguintes. A sensação de choque provocado nunca nos abandona. E talvez essa seja uma das maiores delícias da primeira temporada de “The Bear”, a intensa virtude de gerir as expectativas e de nos dar uma história antiga – a gestão de um negócio familiar – com algo que sabe a novo. Não é porque as coisas das cozinhas e dos chefs estão mais presentes na nossa curiosidade do que alguma vez estiveram que “The Bear” funcionou; é porque Christopher Storer soube dar novas soluções a histórias antigas. E, também por isso, é tão bom rever aquele primeiro episódio: pelas várias histórias que poderiam sair dali. A que é contada nos episódios seguintes é apenas uma das muitas possíveis. E, não por acaso, muito boa.