Quando, em 2019, Aida Tavares, diretora artística do Teatro São Luís, e o produtor italiano Renso Barsotti desafiaram Pippo Delbono, ator, encenador e realizador de cinema, figura de culto da dramaturgia contemporânea, a vir a Portugal para criar uma peça inspirada na alma lusa, estavam todos longe de imaginar que em breve o mundo se iria fechar devido a uma pandemia e que Bobo — um dos atores centrais da companhia — iria morrer nesse mesmo ano. “Amore” nasce assim num tempo de morte, de dor, de perda, de caos. Por isso, há que vê-lo não apenas como uma criação que fala de Portugal, mas como uma luta de Pippo Delbono para fazer deste tempo fantasmagórico uma pièce de résistance onde a vida fala sempre mais alto do que a morte.
Criado em 2020, entre Lisboa e Setúbal, a peça que conta com vários artistas portugueses, entre eles a cantora angolana Aline Frazão, o fadista Miguel Ramos e o músico Pedro Joia, acabou por se estrear em Modena, em outubro de 2021, e só esta terça-feira, 8 de novembro (depois de já ter feito carreira em Itália, França e Bélgica), se estreou em Lisboa onde fica até dia 12, seguindo depois para mais dois dias em Aveiro. “Amore”, é uma ode melancólica a Portugal, onde através da música, do canto, da dança e da poesia se fala do Amor e de todas as suas convulsões e agonismos.
“A peça é um patchwork de imagens, conversas, sentimentos, inquietações que Pippo foi recolhendo nas suas residencias artísticas, nas conversas com os artistas convidados e com os atores que são sempre co-criadores, parceiro íntimos dos espectáculos que ele desenvolve, além de que Pippo já tem uma ligação de muitos anos a Portugal, muitas das suas peças estiveram cá”, explicou Aida Tavares ao Observador. A ideia era que o encenador italiano “fizesse um espetáculo inspirado em Portugal um pouco como fez Pina Bausch, quando em Lisboa criou a peça “Mazurka Fogo”, estreada na Expo98″, disse ainda a diretora artística do São Luiz.
Estamos sozinhos com tudo o que amamos
Antes de criar “Amore”, Pippo Delbono, 63 anos, artista de culto, concebeu e estreou “Gioia” que em italiano significa “alegria”, mas onde, paradoxalmente, falava sobre a sua luta de vários anos contra uma depressão profunda. A doença, porém, não o tem impedido de trabalhar, de criar, de enfim transformar a dor em arte. É também isso que faz em “Amore”; transforma a dor, a perda, a morte em arte, em grande arte.
No dia em que estava marcado para as entrevistas, Pippo estava particularmente deprimido e recebia os jornalistas no seu quarto de hotel, de pijama, cabelo desgrenhado e voz abatida. Era-lhe difícil responder às perguntas e Aida Tavares acabou por ir dando as respostas. Na noite da estreia, porém, Pippo Delbono estava de pé, vestido de branco, atravessou a plateia do teatro S. Luiz e sentou-se no meio dela, numa espécie de mesa de trabalho de onde leu em voz alta os poemas e os textos da peça. Não falha um espetáculo e a sua voz soa rouca, mas grandiosa, a dizer poemas de Carlos Drummond de Andrade, Sophia, Florbela Espanca, Rilke, Prevert, Eugénio de Andrade.
A voz, a mesma que é o fio condutor que liga as imagens que se vão sucedendo e se entrelaçam com as vozes de Aline Frazão, Miguel Ramos, as cordas dedilhadas de Pedro Joia, as danças ritualísticas, carnavalescas dos atores, tudo remetendo para um tempo e um espaço incriados, que só existe o amor, não enquanto fatalidade ou destino, mas enquanto coisa viva, ave de rapina, medo, desejo, necessidade e ditadura.
Apesar de o fado ser a pontuação mais forte neste espetáculo, ele é também atravessado pelas canções de Chico Buarque, José Afonso, as sonoridades de Carlos Paredes ou uma inusitada e belíssima canção em kimbundo, um dos vários dialetos angolanos, que Aline Frazão foi desenterrar de propósito para esta peça. “Belinda”, cantada a solo, não é apenas um dos melhores momentos desta obra, é também um atrevimento e uma provocação de Pippo: a de nos lembrar que Portugal também é feito dos dialetos de Angola e Moçambique como dos crioulos da Guiné e Cabo Verde e do português com açúcar brasileiro, rasurando saudavelmente qualquer nostalgia imperial, aquela que parece obrigatória sempre que se quer falar da nossa identidade. Sim há outras formas de pensar Portugal e só por nos provocar essa assombração este espetáculo já vale a pena.
Além das canções e dos poemas que crescem entre um cenário de paredes que ardem em vermelhos e gelam em azuis noturnos, que projetam sombras de árvores mortas que depois, milagrosamente, renascem pela força do amor e da persistência (todo o cenário é criado pela artista plástica portuguesa Joana Villaverde), ouvimos a estranha história de um monge que todos os dias subia uma montanha para regar uma árvore seca até que muitos anos depois de cumprir este ritual, a árvore se cobre de folhas. A ideia de que precisamos de rituais, e de que o Amor é também um ritual pois é qualquer coisa de profundamente sagrado, é um dos temas que várias vezes Delbono traz para o palco, dando-lhe um força política. Uma das coisas que ele escreveu sobre este espetáculo é que na sua reflexão sobre o Amor percebeu o quanto esta palavra deixou de fazer parte dos discursos políticos, quando é um sentimento humano absolutamente fulcral.
Esta não é uma peça romântica
Isto leva-nos ao facto de nunca, ao longo desta peça, o artista cair na armadilha sentimental do “amor romântico”. Não, nada há de romantismo aqui. Este “Amore” é, antes de mais, uma forma de altruísmo, é uma necessidade do Outro que está sempre envolta em medo, em agonia, precisamente porque sem a presença do Outro enquanto diferença que nos acrescenta e dá sentido à nossa vida, nós não seríamos nada.
Por outro lado, toda a construção dramatúrgica, que contou com a participação do investigador e programador Tiago Bartolomeu Costa, na recolha literária, é também o resultado das circunstâncias difíceis da sua criação: a morte do ator Bobo que devastou o encenador e depois a pandemia, o confinamento. Mas estas dificuldades, se a montante contribuíram para a toada melancólica da peça, a jusante permitiram ao encenador criar uma obra diferente daquilo que costuma fazer, com uma economia de meios e uma depuração que faz trinar as cordas poéticas e se abre a múltiplas leituras e sentimentos.
Novalis, o poeta romântico alemão, não entra nesta peça, mas a sua frase “estamos sozinhos com tudo o que amamos” poderia bem resumir esta obra, que termina com o próprio encenador a deitar-se no chão, em posição fetal, debaixo da árvore que milagrosamente voltou a florir.
Antes de fundar a sua própria companhia em 1986, Pippo Delbono estudou teatro oriental e trabalhou com Pina Bausch, duas influências que se sentem nos seus trabalhos até hoje. Além de ter uma obra dramatúrgica singular, com uma forte carga política e provocadora, integrando nas suas peças pessoas marginalizadas, doentes mentais, refugiados, sem-abrigo, numa vontade de trazer a vida como ela é para o palco e assim fazer com que o público compreenda e se aproxime de tantas questões difíceis ou incomodas. Pippo Delbono, encenou também várias óperas, realizou filmes de ficção e documentário e, desde 2010, tem trabalhado constantemente como ator de cinema, participando em filmes de Luca Guadagnino, Bernardo Bertolucci, Peter Greenaway, Valeria Bruni Tadeshi, entre outros.
Como encenador as suas obras, multipremiadas, estreiam-se um pouco por todo o mundo e têm sempre presença nos principais festivais de teatro como Avignon. Depois de Lisboa, “Amore” vai estar nos dias 15 e 16 no teatro Aveirense, em Aveiro e depois continuará a sua digressão internacional. Aida Tavares confessou ao Observador que “tem esperança” que a peça possa voltar a Portugal para ser vista noutras cidades.
“Amore” está em cena no Teatro S. Luiz, em Lisboa até dia 12 sempre às 20 horas. A peça tem tradução em língua portuguesa