De longas vestes negras e cabelos cobertos por um lenço, Rosa Ramalho percorria a estradas de pó de Galegos de São Marinho (Barcelos) como se percorresse as margens do Nilo, do Tibre ou do Eufrates, como se fosse ela própria uma sacerdotisa a quem foram dados poderes mágicos de fazer da terra uma linguagem, uma expressão das experiências fantásticas, terríveis e avassaladoras da vida humana. Viveu entre os séculos XIX e XX, mas na sua cabeça cruzavam-se tempos e espaços arcaicos e das suas mãos saíam objetos que podiam ter sido criados na Suméria, na Mesopotâmia, no antigo Egito.
A sua imaginação e as suas mãos eram como uma caverna onde se originavam todas as espécies de seres, animais, deuses que atravessam as eras e se fixam no nossos olhos espantados e incrédulos com o mundo saído das mãos desta mulher analfabeta, que muito tarde na vida sairia da sua aldeia, mas que tinha uma sabedoria profunda e inexplicável. As suas obras, de uma grande simplicidade, remetem contudo para o imaginário arquetípico que forjou a civilização humana, para um universo feito de sincretismos onde nascem criaturas excêntricas, grotescas, fantásticas típicas de alguém que, como diria o psicanalista C.J. Jung, “tinha acesso fora do normal aos arquétipos”.
É essa Rosa Ramalho (1888-1977), ceramista, bonecreira, mulher prodigiosa de olhos sagazes, mulher sem tempo e de todos os tempos, que pode agora ser (re)descoberta numa exposição de mais de uma centena de peça inéditas: a coleção até agora desconhecida, de Tito Iglesias, que está aberta ao público no Palácio da Cidadela, em Cascais, e onde fica até 2 de abril de 2023.
Com a curadoria de Isabel Maria Fernandes, podemos ver esta extraordinária coleção que retrata o período final da obra da artista, ou seja, o final dos anos 60 (ela morre em 1977), quando já era uma ceramista reconhecida e adorada pelas elites cultas, estudantes de Belas Artes e homens de negócios como Tito Iglesias, uma cidadão de origem espanhola que geria o hotel se Santa Luzia, em Viana do Castelo, onde chegou a organizar uma das únicas exposições da artista que se fizeram em vida.
A exposição “Rosa Ramalho: As Escolhas de um Colecionador” mostra-nos a ceramista em todo o seu esplendor criativo, pois pode dizer-se que, como artista, viveu duas vidas. A primeira como criança pobre de Barcelos, terra com milenar tradição no trabalho do barro, que aos 7 anos aprendeu a fazer pequenas peças com uma vizinha. Era o chamado figurado, figuras que serviam para assobiar e eram vendidas nas feiras para as crianças brincarem. Peças frágeis e de vida efémera, mas que levaram Rosa a descobrir que o barro era o seu media, a sua forma de falar ao mundo.
Durante décadas partilhou o destino fatal das mulheres: trabalhava com o marido no moinho, paria e criava filhos. Teve sete. As peças em barro eram feitas nos tempos livres e, não tendo qualquer formação que não fosse o que via fazerem outros ceramistas e bonecreiros, ela recorria às histórias que lhe povoavam a imaginação. Assim as suas peças bebiam da tradição, representavam animais conhecidos da fauna em redor e figuras humanas como reis e rainhas, fazia também “alminhas”, animais ferozes, diabos cabeçudos numa coexistência de um real-figurativo e um imaginativo-abstracionista.
“Nesta fase era-lhe vedada a criação de figuras religiosas, pois considerava-se que isso só era algo que só os artistas poderiam fazer e ela era uma bonecreira e não uma artista.A Rosa só vai assumir-se como artista em meados dos anos 50, depois de ser descoberta por António Quadros que a leva à Faculdade de Belas-Artes do Porto e a apresenta a uma elite culta que fica deslumbrada com a obra dela. Mas é preciso deixar claro que muito do que ela faz na fase inicial não é muito diferente do que faziam os outros ceramistas do seu tempo e muito próximo do que se fazia no século XIX”, explicou ao Observador a curadora desta mostra, que é também curadora do museu Alberto Sampaio e especialista em olaria.
A segunda fase da vida de Rosa Ramalho acontece, precisamente, quando o poeta, pintor e pedagogo João Pedro Grabato Dias a descobre a vender os seus “bonecos” numa feira nos arredores do Porto. Nessa fase, Grabato Dias apresentava-se como António Quadros, uma das muitas personas que foi assumindo ao longo da vida. Será pois como António Quadros que Rosa Ramalho o conhecerá e se deixa guiar por ele, para o Porto, para Lisboa, para galerias de arte e até para o jardim zoológico. Nesta fase da vida, Rosa já era viúva, mas não deixou de trajar de negro nem tirou o lenço da cabeça, apesar de se ter tornado reconhecida e adulada por gente de outra condição social. Rosa nunca os tentou imitar e nunca deixou de ser mais fulgurantemente criativa do que a maior parte deles.
Mulher perspicaz e pragmática, quando se tornou famosa entre as elites e os especialistas em arte, quando deu entrevistas e foi até ao cinema, Rosa abandonou o fabrico de objetos pequenos e começou a fazer peças de grande porte e sobretudo: passou a assinar os seus trabalhos riscando dois RR com um estilete ou em alto relevo. Sentindo-se já não uma mera bonecreira, mas uma artista, atreveu-se também a começar a moldar figuras religiosas, cristos, virgens, santos, santas, diabos.
Os seus cristos ficaram famosos pela distorção das proporções, algo que era comum também na arte de antiga Suméria e Mesopotâmia: o exagero de uma parte do corpo, quer para maior ou para menor, para enfatizar uma ideia inconsciente (Erich Neuman). Os seus cristos com uns braços demasiado pequenos para o tamanho do tronco e das pernas carregam toda a impotência humana de um homem e não de um Deus. Noutras peças, Rosa funde Cristo com o Diabo, criando uma figura onde a coroa de espinhos mais se parece com cornos e nas mãos lhe coloca uma forquilha, é todo um jogo sincrético entre o sagrado e o profano que ela faz sem se aperceber.
Nesta fase, Rosa Ramalho solta-se das muitas amarras do seu estatuto social de mulher e de pobre e deixa correr o caudal da sua imaginação. O ponto alto desta fase são os “Bichos Ferozes” como ela lhes chamava e que são um bestiário de figuras míticas, monstruosas “vindas de um mundo às avessas onde tudo era permitido”, explica a curadora. Nesta exposição podemos ver um numero considerável destes seres que, além de fascinantes, demonstram a complexa e borbulhante realidade interna de Rosa Ramalho, mas também o quão simples e com pouco rico era o seu mundo externo. Por isso, ela enriquecia-o com o seu maravilhoso mundo interior, onde havia seres híbridos metade bicho metade monstro, metade homem ou mulher metade monstro. Uma das suas inspirações para estas figuras fantásticas era a sua perceção de que o mundo ao redor também tinha coisas fantásticas como as lampreias cuja boca (um ventosa crivada de dentes) a vai inspirar para fazer os seus monstros.
Dividida em seis núcleos — Vida Quotidiana, Festas e Divertimentos, Religião, Fauna e Flora, Bestiário e Vasilhame — esta mostra é também o reflexo do olhar de um homem leigo sobre o trabalho de Rosa Ramalho e como não é preciso ser um especialista em arte para se sentir o estranhamento, a inquietação causada por estas peças que parecem ter vindo de há muitos milénios atrás.
Depois de se tornar a mais famosa artista da chamada Arte Bruta em Portugal, Rosa Ramalho passou também a trabalhar por encomenda e, numa antiga entrevista à RTP, vemos que ela não tinha mãos a medir e contava apenas com ajuda de uma neta, Júlia Ramalho, que veio a suceder-lhe como ceramista. A artista passa a frequentar feiras um pouco por todo o pais, e numa delas (em Cascais) recebe até a visita de Marcelo Caetano.
Isabel Maria Fernandes chama a atenção para os tabuleiros de xadrez feitos por Rosa, que devem ter sido um encomendas, uma vez que é pouco provável que a artista conhecesse o jogo. O facto é que aparecem tabuleiros de xadrez com as peças deliciosamente interpretadas por Rosa Ramalho, onde o rei é uma peça gigante face às outras e a rainha, que poderia ser uma deusa Suméria com os braços curvados sobre o peito (uma forma muito usada na antiguidade para representar as deusas e/ou as figuras femininas segundo escreve Erich Neuman), é uma figura muito mais pequena, não obstante o seu poder no jogo. “Ela parte quase sempre da tradição dos bonecreiros barcelenses para depois inovar aproveitando a liberdade deste mundo transgressor que fazia fronteira com o universo infantil. Ali, face a uma realidade muito dura, ela podia rir, fazer o contrário do que era esperado, não respeitar as regras”, diz-nos ainda a curadora.
Apesar de ter consigo tantas peças de Rosa Ramalho, Tito Iglésias nunca as desencaixotou, nem exibiu a sua posse, pelo que esta mostra é uma oportunidade única para ver um conjunto tão vasto e inédito de obras da artista. A organização é da Fundação D. Luís I e da Câmara Municipal de Cascais, no âmbito da programação do Bairro dos Museus, que integra a Galeria de Exposições do Palácio da Cidadela de Cascais.
A exposição abriu ao público dia 13 e fica até dia 2 de abril de 2023 na galeria de exposições do Palácio da Cidadela, em Cascais. Pode ser visitada de terça a domingo entre as 10h00 e as 18h00 (última entrada às 17h40).