Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

É engraçado até um determinado momento, depois entra apenas numa espiral de ansiedade. Funciona quase como aquela velha teoria do copo meio cheio ou meio vazio, de quem percebe que é uma coisa boa ser um dos últimos a entrar em campo num Campeonato do Mundo mas ao mesmo tempo é mau andar só a ver os jogos dos outros enquanto se treina. Permite tirar ilações sobre o que se pode esperar de uma competição que por ser realizada a meio da época se transforma numa experiência nova, aumenta de forma natural os níveis de ansiedade por nunca mais chegar a hora – e sem se perceber ao certo para que lado os 90 minutos podem cair, porque entre nulos e encontros com poucos golos também houve as goleadas de Inglaterra e Espanha. Sim, qualquer equipa tem de gerir este turbilhão de sentimentos. No caso de Portugal, isso estava a ser feito com uma surpreendente confiança de Fernando Santos, de sorriso rasgado como não é habitual.

Dia 5 do Mundial. Foi de bicicleta que Richarlison colocou nota artística na vitória do Brasil frente à Sérvia (2-0)

“Tenho a ambição, o sonho e o desejo de ganhar o Mundial”, expressou a certa altura da antevisão o técnico nacional. Sim, foram muitas as referências às dificuldades que todas as formações vão enfrentar nesta fase final para chegarem a ganhar ao sétimo jogo. Sim, foram muitos os elogios ao crescimento sustentado das equipas africanas no plano tático e de conhecimento do jogo (como se viu na ronda inicial com Senegal, Tunísia, Marrocos e Camarões, empatando sem golos ou perdendo por margens mínimas com esse ponto de curiosidade de nenhuma equipa ter marcado). No entanto, e para lá disso tudo, resultava uma confiança que até parecia estar acima do normal entre os sinais de que o grupo voltava à sua “normalidade”, fosse pela proximidade de todos os jogadores em estágio, fosse pelo acordo Manchester United-Ronaldo.

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“Não acho que o tema Ronaldo tire o foco. Não houve nenhum comentário no espaço de trabalho e lazer conjunto, ainda hoje estavam 20 jogadores a ver o jogo, uns nos matraquilhos etc.. Há um foco total, um espírito fantástico. Sabem a dificuldade que nos espera. Vencer uma competição destas é difícil para qualquer seleção, basta ver os jogos até aqui. Hoje em dia cada vez mais as equipas são muito fortes, muitos são colegas ou adversários, mais habituados às questões táticas. Estamos convictos. É como o código postal, como lhes dizia, meio caminho está feito. A única palavra que está escrita na sala do balneário é nós. Há muitos jogadores que ganharam o Europeu e a Liga das Nações mas o coletivo é o essencial. Há muito tempo que não via 20 e tal juntos a ver um jogo. Nos treinos é notória a alegria, a vivacidade, o querer, esse foco, sem estarem amarrados”, destacara Fernando Santos na antevisão da partida inaugural.

“Em qualquer competição o primeiro jogo é o mais importante, é o primeiro e o próximo. Já comecei também com três empates e ganhámos, agora assinávamos todos isso, mas é um risco muito grande… O Gana é uma equipa muito organizada, este último jogo com a Suíça mostrou isso. É muito rápida no ataque rápido, se acharmos que é só marcar e não interessa o resto vamos ter problemas. Temos de analisar o adversário e pensar em nós. Portugal encontrou nos últimos quatro Mundiais conjuntos africanos e foram sempre jogos apertados, difíceis. As equipas africanas têm muito talento, muita imprevisibilidade. Há uns anos eram mais individuais, agora são mais coletivas. Têm jogadores de muita qualidade, um treinador experiente”, recordara, entre essa visão da campanha de 2016 que acabou com a vitória no Europeu.

Até a matriz definida para o encontro necessitava apenas de saber os nomes dos intérpretes. Objetivo para procurar? “Manter a mesma alegria, dinâmica, versatilidade, imprevisibilidade e capacidade na reação à perda”. Objetivo por encontrar? “Não desligar do jogo e não entrar em falhas desnecessárias”. Foi por isso que, alterações esperadas à parte, a equipa não sofreu grandes alterações a não ser o resguardar de Pepe para as próximas batalhas e a colocação de Bernardo Silva mais pelo meio tendo Bruno Fernandes a cair mais na direita e Otávio a fechar à esquerda. E os aspetos bons e mais voltaram a repetir-se no 974, o estádio feito de 974 contentores (indicativo do Qatar) que é o primeiro totalmente desmontável no futebol.

Com todos os focos sobre Ronaldo, que bastava cumprimentar as crianças no túnel com as imagens nos ecrãs para o estádio entrar em delírio, o avançado cumpriu os serviços mínimos: falhou uma oportunidade a abrir flagrante, deu um salto gigante a parar no ar que não demorou a tornar-se viral nas redes sociais, ganhou e transformou um penálti que inaugurou o marcador. No entanto, foi Bruno Fernandes a assumir o papel de líder sem braçadeira da equipa quando mais precisou para estancar a quebra anímica do empate sofrido. Até à chuva de golos na meia hora final, Portugal dominou sem quebrar o estigma do racionalismo. Tem de ser tudo pela certa, tudo direitinho, tudo a evitar qualquer risco que mais não é do que a maior ameaça que qualquer adversário. Depois, e mesmo a ganhar por 3-1, lá vieram os fantasmas do costume. A paragem, a desconcentração, a quebra quando ainda havia jogo. Agora, chegou. Na próxima pode ser fatal.

Portugal não demorou a mostrar ao que vinha. Aliás, demorou precisamente 89 segundos, altura em que uma receção mais longa de Ronaldo seguida de uma falta quebrou uma posse de bola desde o arranque de jogo sem que os ganeses avançassem linhas ou arriscassem muito e com Bernardo Silva a vir quase à área para receber, virar e distribuir de frente. Portugal nunca abdicou na fase inicial de atacar pela certa, com Bruno Fernandes a fazer por mais do que uma vez o gesto para Rúben Neves para não arriscar mas avançar com a certeza de que a posse continuava nacional. E foi assim que a Seleção assumiu as rédeas da partida, tendo Otávio a tentar um primeiro remate numa segunda bola que saiu muito ao lado e as duas primeiras grandes oportunidades por Ronaldo: isolado por Otávio, adiantou demasiado e permitiu que Ati-Zigi ainda fosse a tempo da “mancha” (10′); a seguir, após um salto muito acima do defesa contrário, desviou ao lado de cabeça na sequência de um cruzamento de Raphael Guerreiro (12′). O foco do jogo estava encontrado.

Parecia que estava tudo a acelerar, as mudanças seguintes começaram a entrar abaixo. Uma, duas, mais uma abaixo. Com Bruno Fernandes a descair mais sobre a direita quando não jogava por dentro para ser Cancelo a dar a profundidade, Otávio a fazer o mesmo pela esquerda também para compensar os avanços constantes de Raphael Guerreiro e Bernardo Silva com mais liberdade para jogar no meio como gosta, Portugal lá ia dominando mas num ritmo mais lento que acelerava a estratégia ganesa sem bola, sempre arrumados com linhas baixas e com a principal missão de não sofrer antes sequer de pensar marcar. Essa previsibilidade fez com que o remate seguinte surgisse apenas aos 28′, com João Félix a tentar mas muito por cima. Mais uma vez, pela pequena instabilidade que qualquer abanico proporcionava no conjunto ganês, Ronaldo ainda conseguiu marcar mas o lance estava anulado por uma falta anterior feita sobre o central Djiku (31′).

Otávio começava de novo a aparecer por ser o jogador que colocava mais risco numa equipa formatada a não arriscar mas os minutos iam passando com Portugal a não conseguir tirar o Gana da sua zona de conforto a não ser num lance em que o médio do FC Porto voltou a acelerar, colocou Ronaldo numa boa posição mas descaído para a esquerda e o remate acabou por ficar prensado num defesa contrário já depois de um tiro de Félix à entrada da área que saiu fraco e à figura (36′). O intervalo chegou com o nulo que se tinha registado no Coreia do Sul-Uruguai, num grupo que parecia ter assinado o pacto com o Diabo das balizas.

Houve uma parte importante na estratégia de Portugal conseguida nos 45 minutos iniciais, que passava pela tomada do controlo do jogo. Problema: o próprio Gana consentia essa forma de estar nacional na partida, não cedendo na parte da organização sem posse com linhas juntas que raramente foram desconstruídas. E com um outro acrescento, visível logo no arranque numa das poucas jogadas em que o corredor central da Seleção não conseguiu fazer a transição e Kudus disparou que nem uma flecha para rematar perto da baliza de Diogo Costa (55′). Mesmo sem grandes oportunidades, o jogo parecia querer mexer perante aquilo que se parecia tornar a inevitabilidade que deixaria as contas deste grupo iguais mas com dois jogos.

Houve a substituição de Otávio por William Carvalho, com o jogador portista a queixar-se de um problema na perna e Fernando Santos a ver nisso a oportunidade para reforçar a dimensão física do meio-campo. A seguir, um lance de Seidu e João Félix que deixou o lateral ganês na fronteira entre o amarelo e o vermelho num encosto de cabeça no avançado português. Depois, aqueles habituais cânticos de Cristiano Ronaldo que começaram a surgir das bancadas. Era uma tentativa de apoio, tornou-se quase num prenúncio para haver um desbloqueio no fatídico nulo da forma possível dentro do encaixe que o jogo levava: o capitão ganhou uma grande penalidade a Salisu, agarrou na bola, deu-lhe um beijo e inaugurou o marcador.

Mais do que controlar a partida, que já esteve mais controlada do que estava antes do golo, Portugal tinha na mão os momentos do jogo com a vantagem do seu lado. Perdeu-a, quando um erro coletivo permitiu que Kudus fosse receber uma bola na profundidade nas costas de Rúben Dias para cruzar, ver a trajetória mudar em Danilo e acabar com o empate de André Ayew na pequena área. Ganhou-a, quando Bruno Fernandes começou a assumir mais pelo corredor central e decidiu o jogo com duas assistências com condução e aceleração para os golos de João Félix e Rafael Leão. Afinal, a vitória esteve sempre ao virar de uma mexida de peças na equipa. E foi preciso haver aquele aperto do costume para a normalidade voltar, não só na fase do 1-1 mas quando tudo parecia controlado com o 3-1 e um erro de Cancelo originou um golo de Bukari. Foi assim que Portugal, com Diogo Costa a deitar quase tudo por terra num lance de desconcentração…