Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Já começam a ser muitos dias fora de casa num país diferente e em muitos casos com temperaturas opostas, já vão surgindo aquele tipo de coisas que em condições normais não mereceriam sequer uma linha. O último exemplo envolve um dos filhos de Lionel Messi, Ciro. Presente em Doha com a mãe Antonella Roccuzzo e os dois irmãos, foi filmado com alguns cromos da coleção do Mundial da Panini (atenção: não são iguais aos que existem em Portugal, com o fundo da imagem alaranjado e não azulado). Não se vendo, um era o de Emiliano Martínez, outro era a fotografia conjunta da Austrália. Como este ano a numeração não é seguida e está circunscrita às equipas, era o ARG 3 e o AUS 1. Num ápice, aquilo que era apenas um molho de cromos com dois um pouco mais para fora tornou-se nada mais nada mesmo do que uma previsão para o jogo.

O facto de Ciro ser filho de quem é também ajuda mas parece que, depois daquela redenção com o México que apagou a derrota frente à Arábia Saudita, a Argentina está na final e espera apenas o adversário, mesmo tendo em conta que num plano teórico teria pela frente Países Baixos e Brasil até ao encontro decisivo. Aqui, no meio dos adeptos que são um mundo à parte dentro de um Mundial que é um mundo à parte (reforçados para as partidas com o México e ainda mais com a Polónia, com outros elementos que estão mais habituados a andar em claques como se percebe no estádio), a esperança começa a transformar-se em mais do que isso. E se é verdade que Enzo Fernández ganhou um espaço que poucos conseguem, tendo agora saído ovacionado e a ouvir o seu nome na última ronda da fase de grupos, tudo gira em torno de Lionel Messi.

O encontro definido por argentinos e espanhóis como “duelo entre obrigação e ilusão” iria assinalar o jogo 1.000 do astro argentino desde que chegou a sénior, entre Barcelona, PSG e Argentina, constituindo em paralelo mais um teste à sua capacidade de reinvenção em vários momentos da partida como aconteceu na presente temporada em que conseguiu um arranque que poucos poderiam antever ou antecipar. Era com isso que, numa carreira cheia de recordes e dados históricos, tentaria quebrar mais uma barreira: fazer o primeiro golo numa partida do Mundial a eliminar. Ou seja, mesmo tendo os sete golos de Diego Maradona, não marcou além da fase de grupos em 2006, em 2010 (onde ficou em branco), em 2014 e 2018. Seria agora capaz de quebrar essa barreira? Era uma hipótese em cima da mesa contra uma surpreendente Austrália que foi goleada a abrir, ganhou depois pela margem mínima à Tunísia e bateu da mesma forma a Dinamarca.

Confiança não faltava aos adeptos australianos, com um grupo a entrar a cantar “Who the f*** is Messi?” e a ter uma outra ladainha semelhante à que se ouve dos voluntários da organização no metro com o “Exit, this way” mas adaptada a “Quarters, this way [em direção da entrada do estádio], Argentina, that way [para fora do Mundial]. No entanto foram engolidos pelos dois principais êxitos argentinos, entre o inevitável “Hoy te vinimo a alentar / Para ser campeón / Hoy hay que ganar” e o grande êxito entre Maradona e Messi.

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tierra de Diego y Lionel
de los pibes de Malvinas que jamás olvidaré.
No te lo puedo explicar
porque no vas a entender
las finales que perdimos, cuántos años las lloré.
Pero eso se terminó porque en el Maracaná
la final con los brazucas la volvió a ganar papá…
Muchachos, ahora nos volvimos a ilusionar
quiero ganar la tercera, quiero ser campeón mundial
y al Diego, en el cielo lo podemos ver
con don Diego y con la Tota, alentándolo a Lionel.

O El Mundo falava de um conto de fadas que envolvia “um eletricista frustrado, três refugiados de guerra e um gigante escocês que nunca pisara o país”. Ao todo, e entre os 26 convocados, apenas um joga nos clubes dos cinco principais campeonatos europeus. Se dúvidas ainda existissem, só essa separação seria mais do que suficiente para se perceber o favoritismo da Argentina na estreia em jogos com a Austrália em Mundiais. No entanto, o encontro oficial mais recente, no playoff intercontinental de qualificação para o Campeonato do Mundo de 1994, mostrava que os socceroos poderiam ser complicados de bater. Aí, após um empate a um em Sidney com golos de Vidmar e Abel Balbo, os sul-americanos ganharam com um autogolo no Monumental numa partida que ficaria para a história por ter sido a última de Maradona na Argentina após uma longa ausência de três anos e, como recordava o El País, pelo “café veloz” que o imortal génio das Pampas diz ter sido dado por Julio Grondona, líder da Federação, por não haver controlo anti-doping.

Agora, a história deste jogo começou sobretudo com necessidade de cafeína para aguentar o melhor possível um período de mais de 20 minutos em que a única ameaça de remate foi de Papu Gómez, de regresso por um desconforto físico de Di María, mas muito ao lado da baliza de Mathew Ryan. O conceito de baliza adversária não era algo muito familiar aos homens mais adiantados da equipa mas a Argentina, tendo o controlo total da partida, não colocava aquela mudança acima para desequilibrar a bem organizada defesa contrária e até chegava a andar a trocar a bola de pé para pé quando em ponto morto com tudo o que isso facilitava a tarefa dos socceroos. Os minutos foram passando e nem para trás nem para a frente, com o conjunto da Oceânia a estar confortável a jogar assim e os sul-americanos sem se mostrarem desconfortáveis com isso.

Depois, quase como um toque divino, apareceu o remédio santo do costume. Às vezes fica complicado de explicar como alguém tão pequeno de tamanho e tão grande de genialidade se agiganta no meio de uma total clandestinidade ao longo do jogo para chamar a bola que é sua com aquele íman dos predestinados e fazer um golo em forma de comprimido para a bipolaridade que de quando em vez se sentia perante a inoperância ofensiva dos argentinos. Até aí, uma finta, uns passes e mais andar a passo do que corrida em zonas longe da baliza; na primeira vez que tocou na bola, aproveitando uma segunda bola, remate em arco e 1-0 (35′). É assim, Leo é isto. Por alguma razão tem músicas como um Deus nestas igrejas que são qualquer estádio cheio com adeptos da seleção das Pampas como voltou a acontecer no Qatar.

O intervalo chegou com a Argentina em vantagem com um golpe de génio, o segundo golo surgiu num golpe de azar com falta de destreza à mistura: Mathew Ryan, guarda-redes que tem sido dos melhores da equipa neste Mundial, deu uma “borla” a mostrar o jogo de pés que devia ficar mais vezes reservado apenas para si e ofereceu de bandeja o 2-0 a Julian Álvarez que praticamente sentenciava a partida (57′). O jogo, à partida, estava acabado mas os cangurus ainda arriscaram dar o seu salto para a surpresa num momento de glória que ficou perto: Craig Goodwin rematou, a bola desviou em Enzo Fernández e Emiliano Martínez não teve qualquer hipótese perante aquilo que foi considerado autogolo apenas uns minutos depois (77′) e pouco depois Behich teve a jogada de uma vida a fintar tudo e todos como um Messi antes de rematar para aquilo que parecia ser o empate mas a bola ser ainda cortada para canto por um defesa contrário (80′). Ficou o susto, sobrou a passagem. E ainda foi Lautaro Martínez a falhar uma grande oportunidade antes do momento chave que podia ter mudado tudo de novo, com Martínez a travar o remate de Kuol isolado.

A pérola

  • Lionel Messi. Neste caso basta dizer apenas isto, Lionel Messi. Uma, duas, 100, 500, 1.000 vezes.

O joker

  • Os jogos que Enzo Fernández tem feito neste Mundial colocam vários argentinos a perguntar-nos, quando percebem que somos portugueses, se o médio sai já do Benfica este mercado ou no próximo verão como se fosse algo inevitável e já alinhado nas estrelas de muitos milhões. De forma natural, é um candidato a pérola, a joker ou a pérola ou joker. No entanto, convém destacar a nova coqueluche do Manchester City, Julian Álvarez, que saiu da mesma escola do River Plate cozinhada por Marcelo Gallardo, pode estar meio na sombra de Erling Haaland mas é um craque a crescer com 22 anos.

A sentença

  • Com esta vitória, Diego Maradona e Johan Cruyff já marcaram mesa no bocado de céu que ocupam e que será várias vezes recordado nos próximos dias: se a Austrália falhou a possibilidade de fazer história e chegar pela primeira vez aos quartos, a Argentina confirmou presença no encontro frente aos Países Baixos. O vencedor vai encontrar depois Brasil, Coreia do Sul, Japão ou Croácia nas meias.

A mentira

  • Pode pensar-se que no meio de tanta qualidade não há nenhum imprescindível na equipa a não ser Lionel Messi mas nem sempre é assim e há muitas fases do encontro em que se percebe que jogar sem Ángel di María não é a mesma coisa para a equipa. Ganha o jogo interior, com Papu Gómez e Mac Allister mais por dentro para Molina e Acuña subirem, perde a capacidade de dar largura ao jogo e atrair a defesa contrária mais para um dos corredores, libertando espaços para o próprio Messi.