Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

No final do encontro com a Coreia do Sul em que nem a derrota impediu o primeiro lugar do grupo, Ronaldo estava no centro de tudo e todos menos que nada nem ninguém pudesse defender a exibição ou a reação que teve na altura de uma substituição que nessa partida até poderia ter pecado por tardia. Por todo o contexto que se criou, do foco na discussão com um jogador sul-coreano à rábula do não-fala-afinal-já-fala na zona mista, passando ainda por números de uma exibição que ficou como a pior no Mundial e uma das piores pela Seleção, o capitão chegara a uma bifurcação de caminhos que iria transformar esse ponto numa rutura ou numa viragem. Na conferência de imprensa antes da partida com a Suíça, Fernando Santos acentuou esse rumo quando que passando de vez o volante para as suas mãos sem esquecer que infringira o seu código.

Titular para recordes, o caso da substituição e um regresso inesperado à zona mista: os sete capítulos da rutura ou viragem de Ronaldo

“Gostava de dividir a resposta sobre essa questão em dois momentos. Quando acabou o jogo, fui primeiro à flash e depois logo para a conferência. Disse e repito: lá no campo não ouvi nada, ele estava muito longe e só ouvi a discutir com o jogador da Coreia. Depois sim, vi as imagens. Já vi. Se gostei? Nada, não gostei mesmo nada. Mas isso a partir daí é uma situação que tem de ser resolvida em casa e depois temos é de pensar no jogo com a Suíça para ter aí o foco, assunto encerrado. Se vai ser titular? Só dou a equipa aos jogadores no estádio, sempre foi assim desde que cheguei. De resto, o assunto está terminado, resolveu-se em casa e todos estão disponíveis”, comentou. Pareciam só umas frases, estava a abrir-se uma nova era.

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“Não gostei mesmo nada”, admite Fernando Santos. Pela primeira vez não é Ronaldo e mais dez (mas pode jogar de início na mesma)

Desde que começou a aparecer ao mais alto nível nas grandes competições no Europeu de 2004, Ronaldo foi sedimentando um estatuto que o conduziu ao patamar de melhor português de sempre e um dos melhores de todos os tempos a nível mundial (também pelo impacto que ganhou fora de campo, onde continua a ser uma figura quase divina para milhares e milhares de adeptos do futebol de países periféricos às grandes decisões). Era ele e mais dez, fosse na fase em que jogava nas alas, fosse no momento em que se tornou mais um 9. E era assim quase de forma natural, de uma maneira assumida por tudo e todos. Bastava estar, bastava existir, bastava ser. Agora, a quebra no rendimento e na utilização na primeira metade da temporada no Manchester United contagiou esta vinda a um Mundial que até ao encontro frente à Suíça foi sempre beliscando o pedestal de “Ronaldo e mais dez”. Agora, da pergunta que durante quase duas décadas não se colocava sequer à resposta que durante quase duas décadas nunca foi dada, houve um choque com a nova realidade.

Coincidência ou não, no treino após a conferência de imprensa do selecionador, o avançado não estava tão solto nem sorridente como se vira noutros dias. Foi o último a subir ao relvado, andou de cara mais trancada, parecia andar com uma barragem mais carregada. A possibilidade de ser suplente nunca tinha sido muito colocada. Havia, isso sim, uma resposta por dar do jogador que tinha nos helvéticos um autêntico banco de golos, com cinco em três jogos. Resposta talvez não fosse propriamente o melhor termo, tendo em conta que para alguém com um currículo com tantos recordes basta responder com os números que alcançou até hoje, mas quase uma questão de orgulho. Too late para Santos: o número 7 ia para o banco.

O técnico tentava (mais uma vez) ser o primeiro português a chegar aos quartos do Mundial e assumia aquilo que todos pensavam que poderia ter como data de validade o final da competição. Ou seja, quando todos falavam no relógio suíço e de como esta equipa se podia tornar um canivete em campo, Fernando Santos fez uma mudança temporal que fez ruir o paradigma “Ronaldo e mais dez” mais cedo do que se esperava. Tudo correu bem a Portugal, sobretudo ao substituto direto do capitão, Gonçalo Ramos, que entrou como titular pela primeira vez na prova para fazer trêss golos e uma assistência numa fase a eliminar. No entanto, aquilo que mais mudou foi a forma de jogar da equipa a dar um salto coletivo enorme dentro de exibições de encher o olho no plano individual como as de João Félix ou Otávio. E agora que foi superada essa espécie de complexo a nível de Seleção, a goleada à Suíça foi o melhor exemplo de gratidão a Cristiano Ronaldo.

Entre a mobilidade que pretendia para furar e desposicionar um adversário que em defesa organizada tem sido um dos mais fortes deste Mundial, Fernando Santos foi adaptando o seu triângulo do meio-campo à forma como a Suíça também se apresentava. Ou seja, da mesma forma como os helvéticos faziam recuar Sow para o lado de Xhaka num 2×1 com Freuler na frente mas adiantavam o médio do Eintracht para 1×2, Portugal tinha William Carvalho como o médio mais recuado e Bernardo Silva mais na frente a descair sobre a direita ou ao meio fazendo Otávio a adaptação a 2×1 ou 1×2 mediante aquilo que fosse necessário. Foi assim que os minutos passaram, dos cinco aos dez e dos dez aos 15, havendo de quando em vez alternância de posições entre os elementos da frente sem que os suíços se mostrassem incomodados com a mobilidade.

Bernardo Silva ainda teve uma desmarcação de rutura entre lateral direito e central com cruzamento para Gonçalo Ramos cortado pela defesa helvética (16′). Era essa parte que faltava no jogo português, que andava à procura da sua referência ofensiva sem sucesso estivesse Gonçalo Ramos mais entre os centrais ou a sair para fazer jogo apoiado. A primeira vez que saiu, deu golo; nas duas seguintes, terminou com remate para defesa de Sommer. O avançado do Benfica foi a chave para desbloquear o que parecia trancado a sete chaves e acionou o despertador que trocou as voltas aos suíços: primeiro teve uma bomba de pé esquerdo a entrar no ângulo após assistência de João Félix que em condições normais nunca entraria ali (17′), a seguir esteve numa jogada cortada que permitiu a Otávio rematar a segunda bola à figura e por fim voltou a receber um passe de Félix de forma orientada, perdeu espaço mas atirou para nova defesa (22′).

Só mesmo de bola parada a Suíça conseguiu criar perigo entre umas arrancadas de Embolo que não tinham depois outro Embolo para dar continuidade tamanha era a distância entre setores da Suíça por mérito do que Portugal fazia no meio-campo, com Shaqiri a tentar de muito longe de pé esquerdo e a obrigar Diogo Costa a uma defesa mais apertada. No entanto, esse pareceu quase o momento em que Portugal quis mostrar que se era para brincar aos lances de estratégia, também conseguia ser melhor. Tão melhor que, depois de um canto de Bruno Fernandes na direita, Pepe subiu mais alto no meio da confusão para desviar de cabeça para o 2-0 (33′). Em pouco mais de meia hora a Seleção tinha o avanço como não tivera nos restantes jogos e só num lance em que a bola ficou presa entre Diogo Costa e Freuler na área houve algum perigo, sendo que foi Sommer a tirar mais um golo a Ramos isolado por Bruno Fernandes antes do intervalo (43′).

A Suíça tinha muito para corrigir ao intervalo, a Suíça “conseguiu” entrar ainda pior no segundo tempo. E o que se viu, mesmo num encontro a eliminar da maior prova de seleções do mundo, foi quase um prolongar de um jogo particular de pré-temporada em que os jogadores se sentem soltos, confiantes e determinados a mostrar que aquilo que estão a construir tem mesmo condições para acabar da melhor forma. Não há nada que pague o simples jogar com prazer. A arriscar, para a frente, a tentar fazer ainda mais bonito aquilo que já seria bonito por natureza. Foi assim que nasceu a jogada do terceiro golo nacional, tendo Diogo Dalot na direita a cruzar rasteiro para o desvio na pequena área ao primeiro poste de Gonçalo Ramos (51′). Foi assim que se inventou um verdadeiro hino ao futebol que não fica atrás do tão falado terceiro golo do Brasil com a Coreia do Sul, com Félix, Otávio e Ramos de primeira até à assistência para Raphael Guerreiro (55′).

O encontro que desde o segundo golo estava arrumado ficou em definitivo fechado, com a Suíça a ter a sua pequena alegria na sequência de um canto que sofreu um desvio ao primeiro poste e permitiu a Akanji fazer o 4-1 (58′) que ainda deu a possibilidade aos adeptos helvéticos de festejarem qualquer coisita sem que demorassem muito a ver os portugueses a prolongarem a barrigada de celebrações com João Félix de novo a abrir o livro entrando pela zona central a assistir Gonçalo Ramos e o avançado a completar o hat-trick com um simples picar de bola por cima de Sommer (67′). Depois, era momento para outro espectáculo chamado Cristiano Ronaldo, que deixou as bancadas em delírio ao entrar a pouco mais de 15 minutos do final com Pepe a dar-lhe a braçadeira ainda na linha lateral. Foi audível: ninguém esquece o que ele fez nas últimas duas décadas. Não marcou? Não (ou melhor, até marcou mas foi anulado). Mas haveria algum golo maior do que as ovações que recebeu a par do fabuloso 6-1 de Rafael Leão? Também não, claro.