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"BAqUE" é um "corpo que peita”, é um “corpo que vai para a batalha

Este artigo tem mais de 1 ano

"Se o meu corpo não fosse como é, como é que eu seria?" É a pergunta que percorre "BAqUE", espetáculo-concerto que se estreia no Teatro do Bairro Alto. Gaya Medeiros apresenta-nos esta criação.

O espectáculo está em cena até ao dia 18 de dezembro
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O espectáculo está em cena até ao dia 18 de dezembro

Diana Tinoco

O espectáculo está em cena até ao dia 18 de dezembro

Diana Tinoco

De dois corpos trans que tentavam escrever novas narrativas, com novas possibilidades identitárias associadas a outras motivações, desejos, estéticas ou éticas, nasce o “convite mais gentil e mais honesto com a nossa identidade”. É desta forma que Gaya Medeiros, bailarina, encenadora e produtora nos convoca a outras realidades, além das narrativas autobiográficas, que se questionam e fazem ouvir a partir de um contexto maior do que as pessoas que integram este coletivo. Celebra-se.

“BAqUE” acontece num chão relvado entre quatro paredes. “BAqUE” acontece num quarto. “BAqUE” é um lugar público, privado, íntimo, partilhado. “BAqUE” é um conjunto de personas que se constroem tanto quanto o seu processo performativo. “Um namoro, uma paquera, um momento de reflexão” em que se desdobra uma confiança num território mais pessoal, entre cinco corpos em palco. Esses cinco transportam-se “num ritual de afetos e fábulas” para um lugar em que todos os corpos são iguais, sem que exista género.

Com um elenco muito diverso (Ary Zara, Lari Tav (Labaq), João Leonardo (Kali), Gaya de Medeiros e Eríc Santos) que coabita nas suas individualidades e nas suas artes em palco, mas que ao mesmo tempo despe e veste outras frentes artísticas, vivem-se e partilham-se existências peculiares e, todas elas, acrescentam coisas a este espetáculo. Deitada no chão, Gaya Medeiros, está coberta de roupas soltas. O espetáculo começa. Retiram-lhe a roupa. Veem-se camisolas, calças a voar. Disparadas umas contra as outras. A bailarina fala. Rasteja pelo chão de relvado sintético e grita “Quem chegou aqui primeiro?”.

“Corpa que se levanta”

“Há uma vontade de pensar este lugar”, diz Tiago Cadete, responsável pelo desenho de luz e o espaço cénico. Vemos uma democracia do olhar, sem a rigidez de lugares distribuídos horizontalmente de frente para um palco. Numa sala em que as cadeiras se distribuem em jeito quadrangular pela sala, quase como se desenhassem um percurso, sentem-se perceções diferentes a partir dos olhares de disposição. Por vezes, há uma ideia de classe. Outras de desporto. Uma ideia de golfe “associada a uma classe muito forte, ou então a um universo muito do ganho desportivo, eventualmente, do futebol, que é também pensar esse espaço”, continua Cadete enquanto os seus olhos percorrem a sala.

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É neste lugar “heteronormativo do desporto” que outros corpos e ideias se encontram a performar, desconstruindo o espaço que lhe era historicamente atribuído. É um lugar exterior, com a ideia teatral de que nunca o é. É um lugar que se vai manipulando, reivindicando, questionando. É um lugar que se toma de si e que se desgasta. “Ary, posso?”, “Gaya, posso?” e assim se seguiam questões e questões sem que lhes valesse qualquer aprovação. Das questões viravam palavras, das palavras viraram ideias, das ideias viravam afirmações. Corridas nas diagonais, movimentos nas verticais e chão. Este era um relvado que envolvia em aconchego, que enraizava corpos e que de lá se transportavam entre as esferas íntimas e públicas, até que não se sabe mais a que esfera se pertence. Aliás, terá de o haver?

José Fernandes

Ao mesmo tempo que se celebra, analisa-se cada partícula e amostra “microscópica” das várias possibilidades, facetas e aspetos destas pessoas. “Estou a sentir tanta raiva que até me sinto feliz”, diz Gaya Medeiros. “Ai que alívio, ai que solidão”, continua. Segue Éric Santos. “No meu quarto. Volto para a cama. Deito-me na cama”. Labaq canta. Kali dança. Canta e dança. Para. Pega na guitarra que se vai mostrando um e outra vez ao longo do palco. E canta.

Assume-se que dentro dos “combinados invisíveis” que se constroem entre o real do palco, da luz, do ritual cénico, das pessoas caladas e das que falam entram e saem emoções, momentos de catarse. Resgatam-se pensamentos que, outrora não chegariam mesmo que lá habitassem. “Você lembra que você é você, e que você também, às vezes, está na cama e não quer sair da cama? Você lembra que tem uma mãe ou já teve uma mãe e com essa relação veio muitas questões e muitas expectativas?”, perguntam.

Este é um espetáculo em que honestidade também caminha nesse sentido e, com ele, a passagem direta para uma “lista de fábulas”.

Se os movimentos se alastram, produzem, reproduzem, os tempos que se contam, cruzam-se numa relação de tempo-espaço. Apesar de ser uma questão que a bailarina Gaya Medeiros admite ter surgido muito recentemente. Surge em dois momentos: um em que o coletivo se junta, em círculo, confluindo no escuro, logo após o blackout acontecer, enquanto atitude convocatória – convoca um um “corpo que peita”, um “corpo que vai para a batalha” — e, o segundo, enquanto momento de manifestação que, mesmo acompanhando uma contagem decrescente a que todos os artistas recorrem durante um minuto, usando assim este momento para “lembrar as pessoas que estão vivas, que ainda estão vivas”, ao invés do minuto que costuma representar a memória em torno da morte.

Palavra que querem na sua existência

Este espetáculo-concerto invoca o poder e a pluralidade dos corpos e das palavras. Não se trata somente das que ouvimos, mas das que nos saem da boca, das que se projetam pelo seu significado, ou não. Das que tanto dão como retiram espaço para outras modalidades de existência.

Vestem-se. Despem-se. Vestem-se. Trocam de roupa(s). Vestem-se e despem-se de experiências. Labap canta a partir de uma palavra que lhe chega de uma mensagem da mãe. “Saudade?”, “O que é que vão pensar?”, seguindo-se um composto cantado que representa a ideia socialmente concebida do comportamento de uma “menina, mulher”, sem que haja lugar para outros corpos.

Diana Tinoco

“Coração”. “Croissant”. “Coração-Croissant”. O amor. Uma porção de vida. Uma metáfora simples daquilo que pulsa “o tempo inteiro”. Desencadeiam-se palavras até que se ouve, da boca de Ary Zara, as palavras de Fabrício Garcia “toda girafa dá à luz em pé /o primeiro contacto do filhote com o mundo acontece a partir de uma queda barulhenta /a mais de 2 metros de altura. os filhotes de girafa já nascem sabendo andar, (…) é a relação íntima com o baque que prepara o corpo pra vida.”

É também neste sentido que Gaya Medeiros recorda o livro de mitologia, o qual começou a ler para a criação deste espetáculo. “Partir desta coisa de contar uma história para justificar o passado e como contar histórias para acontecerem novas coisas no futuro”. Continua destacando que, “no passado, as coisas e as palavras estavam muito intrincadas”. Hoje, “o que a gente ganha, sempre sendo alvo da poesia, é brincar com a palavra considerando que ela não é só o que ela parece ser. Eu acho que isso é um poeta que nós temos nos nossos corpos”. Porque a “brincadeira” é um bom lugar para habitarmos.

Já em círculo, depois de um ensaio, cada pessoa fala. Dizem-nos o  que deram de si, o que viveram em lugares individuais e plurais. Ary Zara começa. “Tenho muita dificuldade em perceber o que é que eu trago, mas também tento tranquilizar-me um pouco com isso, pensando que eu trago aquilo que for necessário para a cena.” Éric Santos e Ary Zara conheceram-se em “outras vidas” e era na dança que se encontravam. “Vim para dançar, mas não deixou de ser desafiante.”

No caso de Labaq, é difícil resumir tudo aquilo que aconteceu aqui nos últimos meses. “Para mim foi um grande aprendizado. Foi terapia. Foi crescimento”. Já Kali fala-nos de linguagens. Vem das artes visuais e acredita que este foi um momento importante para aprimorar e enriquecer o coletivo. Até dia 18 de dezembro poderão fazê-lo.

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