O primeiro-ministro neerlandês, Mark Rutte, pediu esta segunda-feira desculpas pelo papel histórico dos Países Baixos no comércio de escravos, reconhecendo ao mesmo tempo as consequências da escravatura que continuam a fazer sentir-se nos dias de hoje.

“Hoje, peço desculpa”, declarou o chefe de governo, num discurso com transmissão televisiva a partir do Arquivo Nacional Neerlandês, citado pela Reuters. “Durante séculos o Estado neerlandês e os seus representantes permitiram e estimularam o tráfico de escravos e lucraram com ele”, reconheceu.

É verdade que ninguém hoje vivo é pessoalmente responsável pela escravatura… (mas) o Estado neerlandês reconhece a sua responsabilidade pelo sofrimento causado àqueles que foram escravizados e aos seus descendentes”, sustentou Rutte.

A posição manifestada pelos Países Baixos era esperada, mas o timing das declarações de Mark Rutte gerou polémica. Vários grupos de ativistas defendiam que o pedido de desculpas devia ter sido feito não agora, mas no Suriname, a 1 de julho de 2023 – dia que marca os 160 anos desde a abolição da escravatura nos Países Baixos (e que, para muitos ativistas e descendentes das vítimas, é na verdade o 150.º aniversário da data, uma vez que muitos continuaram a ser escravizados durante a década que se seguiu à abolição).

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Primeiro-ministro dos Países Baixos reconhece “o sofrimento horrível” causado pela escravatura no Suriname

“Porquê a pressa?”, questionou Barryl Biekman, presidente da Plataforma Nacional para o Passado da Escravatura. Alguns grupos tentaram mesmo impedir a realização do discurso esta segunda-feira, tendo mesmo entrado em confrontos com as autoridades e levados a responder em tribunal.

“Sabemos que não há um momento correto para todos, palavras certas para todos ou o sítio certo para todos”, explicou Rutte durante o seu discurso.

Outras vozes expressaram ainda o seu descontentamento por aquilo que entendem ter sido a falta de consulta prévia pelo Estado neerlandês junto das comunidades afetadas, sobre a melhor forma de conduzir o processo. Roy Kakusi Groenberg, ativista suriname-neerlandês, lembrou o papel de ativistas passados que, durante décadas, tentaram fazer ouvir-se e que agora, diz, foram deixados de fora. “A forma como o governo tratou o assunto faz com que pareça uma verborreia neocolonialista”, caracterizou.

Em sentido inverso, a primeira-ministra da nação caribenha de Aruba, – que ainda integra o Reino dos Países Baixos — Evelyn Wever-Croes, elogiou o discurso de Rutte, que diz representar um “momento de viragem na história do Reino”.

Primeiro-ministro fala em crimes contra a humanidade, mas recusa indemnizações

As declarações do primeiro-ministro neerlandês são o culminar de um processo que se iniciou em 2020 quando, na sequência do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e perante o crescimento de movimentos internacionais como o Black Lives Matter, foi criado nos Países Baixos um painel consultivo para determinar a melhor forma de o governo responder às críticas e encarar o seu papel histórico em práticas como a escravatura. Esta é uma questão particularmente relevante nos Países Baixos, em que as desigualdades raciais são acentuadas, com estudos recentes a apontarem para a existência de discriminação sistémica de minorias étnicas de Marrocos, da Turquia e das Antilhas.

Em 2021, o painel considerou que a participação neerlandesa no comércio escravo constituiu um crime contra a humanidade, recomendando ao governo que pedisse desculpa e que indemnizasse os descendentes vivos de antigos escravos.

No seu discurso, Rutte disse estar totalmente de acordo com as conclusões do painel; no entanto, descartou a hipótese de pagar indemnizações, optando antes pela criação de um fundo educativo para os impactos do racismo e da escravatura, no valor de 200 milhões de euros.

“O que faltou por completo neste discurso foi a responsabilização e o prestar de contas”, afirmou Armand Zunder, presidente da Comissão Nacional para Indemnizações do Suriname. Não obstante reconhecer que as declarações do primeiro-ministro dos Países Baixos representaram “um passo em frente”, reiterou ainda assim a sua posição de que “se se reconhece que foram cometidos crimes contra a humanidade, então o próximo passo é assumir ‘sim, eu sou imputável por isto, a responsabilidade é nossa’… de facto, estou a falar de indemnizações”.

A mesma posição foi manifestada por Almaz Teffera, investigadora sobre o impacto do racismo na Europa para a Human Rights Watch. Num texto, publicado na página oficial da ONG, Teffera afirma que “fazer as pazes com o legado do colonialismo requer consulta prévia com as comunidades afetadas”, sustentando a ideia de que “um verdadeiro ajuste de contas com os crimes coloniais, incluindo a escravatura e outras formas de exploração, requer indemnizações que sirvam como uma forma de responsabilizar e reconhecer os impactos do colonialismo nos dias de hoje”.

Historiadores estimam que os comerciantes neerlandeses foram responsáveis pelo transporte de mais de meio milhão de africanos escravizados para territórios coloniais, sobretudo as Caraíbas e o Brasil. Estima-se ainda que um número igual ou superior de asiáticos terão sido escravizados no território que atualmente corresponde à Indonésia.

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