A extinção da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo (FAMC – CB) “é ilegal”, diz ao Observador o administrador da fundação e histórico advogado de José Berardo, André Luís Gomes, dias depois do Governo assim ter decidido através de um decreto-lei aprovado de forma eletrónica, em Conselho de Ministros extraordinário, reunido esta terça-feira. O responsável justifica tal afirmação com uma carta a que o Observador teve acesso, datada de 26 de maio, em que o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, se compromete em nome do Estado Português a “assegurar o regular funcionamento da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo e do Museu”, enquanto “o arresto se mantiver nos termos atuais” e “durante a restante vigência do acordo de comodato”. No entanto, o ministro assume esta quinta-feira ao Observador que “o objetivo da FAMC-CB” se esgotou.
“O sr. ministro da Cultura não revogou o protocolo, só revogou o comodato”, garante André Luís Gomes. E a carta oficial de Pedro Adão e Silva fala estritamente na denúncia do “acordo de comodato relativo às obras da Coleção Berardo”. “Quando se celebrou o primeiro protocolo, em 2006, a Associação Coleção Berardo obrigou-se, através de um chamado contrato a favor de terceiro, a que, quando o Estado constituísse a Fundação Coleção Berardo e criasse condições para o Museu Berardo abrir, a dar a essa fundação em comodato à Coleção Berardo. E foi isso que aconteceu”, explica o administrador da Fundação Coleção Berardo. Ou seja, “é como eu prometer-lhe a si que vou dar qualquer coisa à sua filha através de um contrato entre nós os dois, mas quando a sua filha aceita, você deixa de poder revogar o contrato, pois ela passou a ser beneficiária”, troca por miúdos o advogado.
Em comunicado, o Conselho de Ministros de terça-feira dava conta que, com a extinção da Fundação Coleção Berardo o Governo dava à Fundação Centro Cultural de Belém plena posse e gestão do Centro de Exposições do CCB, onde continuaria a expor a Coleção Berardo. Mas em declarações ao Observador, André Luís Gomes explica que isso não pode acontecer. “O que nós obrigámos foi a que quando o Estado criasse a Fundação com os estatutos que tínhamos combinado e o Museu estivesse pronto para abrir, nós púnhamos lá a Coleção. A partir do momento que lá pusemos a Coleção, quem tem o contrato de comodato é a Fundação, não é o Estado”, frisa ainda de forma mais clara. “A partir da constituição da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Coleção Berardo, o Contrato de Comodato só tem duas Partes: a dona da Coleção Berardo, a Associação Coleção Berardo na qualidade de dona, e a Comodatária, a FAMC — Coleção Berardo, que usa a Coleção Berardo para ter o Museu Berardo aberto nos termos dos estatutos da Fundação.” Quer isto dizer, no entender de André Luís Gomes, que o comodato hoje em dia é um contrato entre a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo e a Associação Coleção Berardo, e para que este possa ser revogado é preciso uma maioria qualificada do conselho de administração. O que não aconteceu.
“O sr. ministro da Cultura, mesmo sabendo de tudo isto, diz ter revogado o contrato de comodato de que não é parte”, continua André Luís Gomes. “O próprio arresto diz que é a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo que tem que continuar a expor publicamente a Coleção Berardo, não é o Centro Cultural de Belém”, explica também.
De resto, em carta datada de 26 de maio de 2022, a que o Observador teve acesso, Pedro Adão e Silva, enquanto ministro da Cultura, informa a Associação Coleção Berardo que “denuncia o acordo de comodato relativo às obras da Coleção Berardo, em termos que impedem a sua renovação a 1 de janeiro de 2023”, mas compromete-se a que “durante a restante vigência do acordo de comodato e enquanto o arresto determinado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa se mantiver nos termos atuais, o Estado Português irá assegurar o regular funcionamento da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo e do Museu, a fruição pública da Coleção Berardo, bem como cumprir todas as suas obrigações relativas à integridade, segurança, conservação desta Coleção, designadamente quanto aos seguros devidos”.
É nessa mesma carta que Pedro Adão e Silva anuncia a disponibilidade do Estado Português para, “uma vez conhecido o resultado das ações pendentes da decisão judicial, negociar um novo acordo com o legítimo proprietário da Coleção Berardo”.
O Observador teve ainda acesso a todo um conjunto de missivas trocadas entre o Museu Coleção Berardo, a FAMC, a Associação Coleção Berardo e o gabinete do ministro da Cultura, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, o primeiro-ministro, e a presidência do Conselho de Ministros de 26 de maio a 26 de dezembro do corrente.
É a 9 de dezembro que o conselho de administração da FAMC – Coleção Berardo recebe o anúncio, para pronúncia, da intenção do Estado de proceder à extinção da mesma, com extinção do direito de usufruto do Centro de Exposições do CCB, reassumindo a Fundação CCB a sua posse plena e gestão; a reversão de todo o património da FAMC a favor do Estado e a criação de uma comissão liquidatária como se veio a enunciar no decreto-lei que a extingue oficialmente desde terça-feira. A resposta da FAMC é de dia 23, e declara “a inexistência de fundamento sério para extinguir a Fundação”, numa reunião do CA datada de 16 de dezembro, em cuja deliberação foram impedidos de votar os dois administradores que representam o Estado, Elísio Summavielle e Rui Patrício, por conflito de interesses. Até à data não houve mais comunicação entre as partes, a não ser a comunicação pública da existência do decreto-lei que extingue oficialmente a FAMC dado esta terça-feira a conhecer.
Questionado pelo Observador sobre a fundamentação jurídica que levou à extinção da Fundação Coleção Berardo, Pedro Adão e Silva avança com três “razões”: “Com a denúncia do acordo de comodato que anunciei a 26 de maio último, e que produz efeitos a 1 de janeiro de 2023, esgota-se o objetivo da FAMC-CB, relacionado com a gestão da Coleção Berardo”, explica em primeiro lugar, para logo a seguir defender que “a denúncia do acordo de comodato tem o efeito material, a concretizar a 1 de janeiro próximo, de permitir a devolução do Módulo 3 à gestão do CCB. É neste contexto que decorre a extinção da entidade que geriu aquele espaço durante o período em que vigorou o acordo de comodato”. E por último afirma: “A responsabilidade do Governo é, e será sempre, salvaguardar o interesse público. Reitero que, neste momento, a defesa do interesse público e a defesa dos interesses de José Berardo não têm qualquer ponto em comum”.
André Luís Gomes diz-se perplexo com o ministro da Cultura que afirma que “o tempo do senhor Berardo acabou porque quer acabar com a litigância. Não deixa de ser curioso que alguém que nunca se dignou dialogar com o colecionador e diz não ter interesse nisso, esteja à espera de não ter litigância. Temos que nos habituar, mas não a tudo”, conclui o advogado.