Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, marcou presença na cerimónia de inauguração do Mundial do Qatar. Dias depois, no mesmo Campeonato do Mundo, Tamim bin Hamad Al-Thani, o Emir do Qatar, surgiu com uma bandeira da Arábia Saudita ao pescoço durante um jogo dos sauditas. De repente, o corte de relações entre Riade e Doha que durava desde 2017 parecia sanado.

Mas não. Durante o Mundial, a Arábia Saudita bloqueou as transmissões da beINSports, a subsidiária da qatari Al Jazeera que foi a distribuidora oficial dos jogos da competição no Médio Oriente e no norte de África. A atitude surpreendente, principalmente depois de meses de uma relação aparentemente cordial e das indicações deixadas por bin Salman e Al-Thani, deixou claro que a guerra surda entre a Arábia Saudita e o Qatar vai decorrer numa arena específica: o desporto.

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O desporto em geral, assim como o futebol em particular, representa um dos pontos cruciais da escalada de rivalidade entre sauditas e qataris. E esta semana, ainda que sem confirmação oficial, viu a Arábia Saudita dar mais um passo nessa corrida: de acordo com a imprensa do Médio Oriente, o Fundo de Investimento Público saudita prepara-se para adquirir a World Wrestling Entertainment, a WWE, a gigantesca e milionária organização norte-americana que lidera o mundo do wrestling há décadas.

O negócio pode chegar aos 6,5 mil milhões de dólares e é um claro prolongamento de uma relação que começou em 2018. Nesse ano, a WWE assinou um acordo com a Arábia Saudita que previa a realização de dois eventos premium por ano no país a troco de 50 milhões de dólares por cada um dos espetáculos. Ora, tendo em conta que o contrato é válido até 2028 e que os dois eventos anuais vão mesmo realizar-se, os sauditas tornam-se o maior encaixe financeiro da WWE — com receitas que chegam aos mil milhões ao longo de uma década, um valor extraordinariamente superior aos 15 milhões/ano que a organização consegue faturar com a realização da WrestleMania, o principal atrativo da modalidade.

A confirmar-se, a WWE torna-se o mais recente investimento desportivo de uma lista já longa que pertence a este Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita. Já sem falar na contratação de Cristiano Ronaldo — que, embora tenha sido feita pelo Al-Nassr, é um claro golpe de marketing integrado na Visão 2030 do regime saudita –, o país saltou para a ribalta do futebol internacional com a recente aquisição do Newcastle.

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A Arábia Saudita e o Newcastle, o ténis e a Fórmula 1

Depois de mais de um ano de avanços e recuos, já que a Premier League colocou vários entraves ao negócio e garantia que só o autorizaria com garantias de que o tal Fundo de Investimento Público é totalmente independente do regime, a Arábia Saudita finalizou mesmo a compra do Newcastle por mais de 400 milhões de dólares em setembro de 2021. Para além da aquisição do clube da Premier League — que está atualmente no 3.º lugar da classificação –, os sauditas investiram mais de dois mil milhões em parcerias comerciais com clubes de futebol.

Depois, o golfe. Em 2021, aproveitando o crescente descontentamento de alguns golfistas com o principal circuito da modalidade, o PGA Tour, a Arábia Saudita financiou a criação de um circuito paralelo — o LIV Golf. O prize money total de cada evento ascende aos 25 milhões de dólares, com cada vencedor a encaixar quatro milhões, um valor superior a qualquer prémio de vitória no mais lucrativo dos eventos do PGA. O LIV Golf convenceu alguns golfistas de renome, como Phil Mickelson, Dustin Johnson ou Bubba Watson, e o PGA Tour anunciou de imediato que todos os atletas que participassem no novo circuito estariam automaticamente excluídos.

A Fórmula 1 também se tornou um mercado apetecível para a Arábia Saudita em 2022. No ano passado, o mesmo Fundo de Investimento Público tornou-se o segundo maior acionista da equipa detida pela Aston Martin, sendo que já era dono da Aramco, o principal patrocinador. Antes, em 2021, os sauditas já tinham investido na McLaren. A cereja no topo do bolo apareceu com a realização do inédito Grande Prémio da Arábia Saudita, no Circuito Jeddah Corniche, sendo que existem planos para organizar uma corrida em território saudita nos próximos 15 anos.

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Paralelamente, a Arábia Saudita vai organizar e receber os Jogos Asiáticos de Inverno de 2029, os Jogos Asiáticos de 2034 e apresentar uma proposta, em conjunto com o Egito e a Grécia, para ser um dos anfitriões do Mundial 2030 — numa candidatura onde a participação de Cristiano Ronaldo continua a ser colocada em causa. Existe um projeto de 38 mil milhões de dólares para tornar o país num “hub de gaming global com empresas de gaming de calibre mundial” e, já em 2019, os sauditas pagaram mais de 40 milhões para receber o combate de boxe entre Anthony Joshua e Andy Ruiz Jr..

O Qatar e o PSG, o Sp. Braga e o Mundial 2022

O interesse do Qatar no desporto, diga-se, começou antes. Em 2011, há mais de uma década e através da Qatar Sports Investments, o país passou a controlar o PSG — tornando-o claramente o clube mais rico de França e, naturalmente, um dos mais ricos do mundo. A entrada do dinheiro qatari trouxe Matuidi, Sirigu, Maxwell, Kevin Gameiro e Javier Pastore logo na primeira janela de mercado, acrescentando-se Ibrahimovic, Cavani, David Luiz e até um quase reformado David Beckham pouco depois, já para não falar da milionária contratação de Neymar ao Barcelona e da brutal renovação de contrato com Mbappé.

A aquisição do PSG por parte do Qatar Sports Investments colocou Nasser Al-Khelaifi, presidente da empresa, como presidente do clube — mas fez mais do que isso. O empresário qatari tornou-se uma figura importante e relevante nos bastidores do futebol europeu e até mundial, assumindo cargos de liderança na UEFA e na Associação de Clubes Europeus e construindo uma clara esfera de influência que faz dele um dos homens mais poderosos da modalidade.

Tendo praticado o desporto, Al-Khelaifi aproximou-se também do mundo do ténis e tornou-se não só presidente da Federação de Ténis do Qatar como também vice-presidente da Federação Asiática de Ténis. Para além do PSG, Qatar Sports Investments também detém a Burrda Sport, uma marca de roupa desportiva, e financiou a fundação de um circuito mundial de padel em conjunto com a Federação Internacional da modalidade. Por fim, e já em outubro de 2022, o Qatar entrou em Portugal e adquiriu 21,6% do capital do Sp. Braga.

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“A Qatar Sports Investments orgulha-se de investir em negócios desportivos de ponta no mundo inteiro e permitir que estes atinjam o seu total potencial. Portugal é um clube onde o futebol tem fundações profundas — com alguns dos adeptos mais apaixonados e um dos melhores sistemas de produção de talentos do mundo. O Sp. Braga é uma instituição portuguesa exemplar, com uma história que o orgulha, enorme ambição e uma reputação de excelência dentro e fora de campo. Enquanto investidores e parceiros, estamos ansiosos pela inovação, pelo crescimento e pelo desenvolvimento do clube — nas equipas masculinas e femininas, no setor comercial e de marca e ao longo de todas as comunidades e empresas que apoia”, disse, na altura, Nasser Al-Khelaifi.

Por fim, e se a Arábia Saudita ainda procura a entrada definitiva no mundo do futebol com a corrida atrás do Mundial 2030, o Qatar alcançou esse patamar em 2022. O país organizou e recebeu o mais recente Campeonato do Mundo e nem o facto de ter sido, provavelmente, o mais contestado de todos os tempos fez com que a bola deixasse de rolar. Morreram milhares de migrantes na construção dos estádios, o respeito pelos direitos humanos continua a ser para lá de limitado e Doha ainda é um destino pouco amigável para a comunidade LGBT. Ainda assim, o Qatar recebeu o Mundial.

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