O Globo de Ouro ganho há dias por “Argentina, 1985”, para Melhor Filme de Língua Estrangeira, tem de ser visto como mais um passo do que um acaso, onde derrubou favoritos, como “Decisão de Partir”, de Park Chan-wook, da Coreia do Sul, “A Oeste Nada de Novo”, de Edward Berger, da Alemanha, ou “RRR”, de S.S. Rajamouli, da Índia. O filme de Santiago Mitre tem feito um belo percurso por festivais, foi vencedor do Prémio da Crítica (Fipresci), no Festival de Veneza, e do Prémio do Público no Festival de San Sebastián, e tem sido elogiado pela crítica. Em Portugal, não passou pelas salas, foi direto para o serviço Prime Video da Amazon. Agora fala-se mais a sério de uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (é o nomeado inscrito pela Argentina), com fortes possibilidades de arrecadar o prémio e repetir a proeza de “O Segredo dos Seus Olhos”, de Juan José Campanella, em 2010.
Percebe-se o fascínio. “Argentina, 1985” recupera uma boa fórmula de Hollywood e faz tudo acontecer com uma – também — grande inspiração Hollywoodesca. É um filme de tribunal, um drama histórico que vai buscar o famoso caso de o Julgamento das Juntas, onde o então presidente argentino, Raul Alfonsín, deu ordens para os membros das juntas militares serem julgados por crimes praticados durante o Processo de Reorganização Nacional, a ditadura militar na Argentina entre 1976-1983. A ação decorre entre finais de 1984 e 1985 (quando decorre o julgamento), mas sustenta-se muito nos ecos do então passado recente do país. Sempre que há uma oportunidade, faz questão de lembrar o que se passou e como as atitudes mudaram ou estão a mudar.
[o trailer de “Argentina, 1985”]
Parte do encanto da forma como Santiago Mitre imaginou este momento para cinema passa por essa atitude de reforçar a sensação de um período de transformação. O famoso “Nunca Mais” (“Nunca Más”) vem daqui e cada momento passado no tribunal, na procura e investigação de provas, existe para essa transformação. Como se fosse um processo de revolução, mas também uma espécie de saudosismo pela energia que existe em certos momentos para provocar e incentivar a mudança. “Argentina, 1985” salta da ideia de “apenas um filme de tribunal” para contar como aquela história pode inspirar o presente.
No centro está o Procurador Geral Julio César Strassera (Ricardo Darín) e um advogado em início de carreira, Luís Moreno Ocampo (Peter Lanzani). O início dos 140 minutos de “Argentina, 1985″ é passado a construir uma imagem de perigo em volta do que está para chegar à vida de Strassera. Ele sente que a ordem vem a caminho e teme, em antecipação, pela segurança da sua família. A instrumentalização do medo nos primeiros vinte minutos revela-se essencial para sentir a presença dele ao longo do filme: deixa de ser uma coisa tão declarada, mas está lá. Afinal, Strassera e Ocampo – e a sua equipa – estão a mexer num passado recente, sujo.
Apesar, do interesse histórico, “Argentina, 1985” conquista quando vira filme de tribunal. Sobretudo, quando Ocampo surge de surpresa ao lado de Strassera (este não sabia que teria alguém ao seu lado), revela a sua inexperiência e explica porque é que alguém insuspeito foi chamado para o caso: num caso tão minado pelo estado, militares, instituições e passado recente, ter uma cara que ninguém conhece pode ser uma vantagem para conseguir a informação desejada. Com base nisto, Ocampo convence Strassera a reunir uma equipa de jovens inexperientes que percorrerão o país à procura de provas. Caras desconhecidas e, também, vontade e energia para pensar para lá da experiência.
A história provou a teoria certa. E, aqui, acontece talvez o momento mais declarado de Mitre em querer fazer um filme sobre a mudança, sobretudo sobre a vontade de mudança. Quando Ocampo entrevista um a um os jovens que irá contratar para os ajudar, há na retórica de quase todos eles uma vontade de estar lá porque o que se passou – perseguições, tortura, mortes, medo — não pode voltar a acontecer e a melhor forma de garantir que isso não acontecerá é ser um agente de mudança. Até porque, como um deles diz, enquanto jovem, não é o país do passado que quer para o seu futuro.
O título com o nome do país, o ano, é também ele um símbolo da mudança. O realizador argentino dá uma boa vida à fórmula de filme de tribunal e torna fluente um caso pesado e com demasiadas variantes (foram chamadas mais de 800 testemunhas e encontrados quase nove mil casos de desaparecimentos durante o período da ditadura militar). A sugestão de acontecimento no título em nada prepara para o emotivo final, uma cena dilacerante que embrulha bem as duas horas que estão para trás. Em “Argentina, 1985” há todo um passado que aconteceu e uma lição para o presente e futuro. Pode ser mais formulaico do que os adversários que deixou para trás nos Globos de Ouro, mas é uma energizante revisitação de uma fórmula que, quando bem feita, deixa marcas.