O protagonista de “Decisão de Partir” tem problemas em adormecer. Um facto recordado em diversos momentos, usado para descrever diferentes aspetos da personagem, Hae-joon (Park Hae-il). Seja no início para enquadrar a sua vida dramática, entre o trabalho e uma relação apagada e utilitária com a mulher, em que o vemos a fazer uma longa viagem para casa, nas visitas semanais, e quase a adormecer ao volante. Ou a meio do filme, quando num ato de aproximação romântica, sensual e sexual, Seo-era (Tang Wei) lhe explica que o vai adormecer com um método usado na marinha norte-americana, que ela aperfeiçoou. Até nas diversas vezes – pelo menos parecem como diversas – em que adormece enquanto faz o seu trabalho, muitas vezes no carro. O carro é uma constante, é uma personagem em permanente movimento.

O sono, ou o cansaço, tem um lugar preponderante no novo filme de Park Chan-wook. Seis anos após “A Criada” – pelo meio houve “Little Drummer Girl”, estupenda minissérie de 2018 com Florence Pugh e Alexander Skarsgård –, o realizador surpreende no jeito em que encontra formas inovadoras de contar uma história. Faz parte do trabalho, do estilo. Em “Decisão de Partir” demonstra-o com lucidez e garra juvenil. O início é algo tumultuoso, vê-se o protagonista a saltar de cena em cena, de momento em momento, com saltos temporais com substância por preencher. Depressa se percebe que o que está entre uma coisa e outra pouco interessa, interessa sim o salto, a forma como Hae-joon perceciona a realidade a partir da sua mente cansada. Até que ponto ainda é eficiente ou a exaustão está a pregar-lhe partidas?

A dúvida instala-se no espectador. Nessa dúvida acontece todo o filme, obra bastante Hitchcockiana, de certa forma uma espécie de regresso a “Vertigo” / “A Mulher que Viveu Duas Vezes”. Neste caso, de “A Mulher que (pelo menos) Casou Duas Vezes”. Seo-era é uma chinesa que vive na Coreia do Sul há pouco tempo e presta cuidados a idosos. Os idosos adoram-na. Hae-joon, detetive, conhece-a enquanto investiga a morte do seu marido, que caiu de uma montanha enquanto praticava escalada. Tudo indica que não foi acidente: ou foi empurrado ou foi suicídio.

[o trailer de “Decisão de Partir”:]

Conhecer Seo-era apenas adensa esse mistério. Se, por um lado, as provas a ilibam, por outro há algo que nunca é dito sobre a sua personagem. Esta é a primeira hora do filme. Na segunda, Seo-era casa com outro homem e este também acaba assassinado. Coincidência ou não, isso é parte da trama do filme. A outra – que está relacionada – é a relação entre Hae-joon e Seo-era.

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Ambos desejam-se. O que o inibe é ter uma mulher em casa, noutra casa, distante e por quem sente uma desconexão crescente. Se, no início, a relação conjugal de Hae-joon junta carisma e curiosidade, conforme se avança em “Decisão de Partir” percebe-se que a realidade também vai sendo alterada devido ao estado com que o espectador absorve a vivência do protagonista. Convém lembrar: ele dorme muito pouco e isso afeta a narrativa e a perceção desta, em vários níveis.

Pode ser um truque de Park Chan-wook. Ou uma forma incontrolável que tem de contar histórias, de integrar tudo no todo. Sem que isso seja uma situação de que “vale tudo”, isto é, de abdicar de contar uma história por um método mais funcional a favor da estética (narrativa e visual). Há muito que Park Chan-wook confirmou que essa é uma das suas valências, seja no filme que lhe valeu reconhecimento internacional, “Oldboy – Velho Amigo” (2003), no brilhante “Thirst – Este é o Meu Sangue” (2009) ou no já mencionado “A Criada”. Subverter géneros, convenções e expectativas é um dos seus talentos. Com “Decisão de Partir”, venceu o Prémio de Melhor Realizador na última edição do Festival de Cannes.

Prémios à parte, “Decisão de Partir” vê-se como uma maravilha do cinema que mistura mistério, desejo e humor. Muitas vezes estes três elementos estão ligados, poucas são as ocasiões em que servem um propósito por inteiro e nenhum deles se sobrepõe ao outro. O sono do protagonista mistura-se com o real, mas também com o tempo, muitas vezes é impercetível se está a acontecer passado ou presente. Muitas vezes é o presente, um salto de tempo e lugar próprio de quem está cansado e se esquece de como se chegou de A a B. O cansaço interfere também como a forma como os outros – os colegas – percecionam a investigação de Hae-joon. E o julgamento do espectador.

O regresso de Park Chan-wook vê-se como um delírio. “Decisão de Partir” cria também a vontade de regressar aos seus filmes, de sentir que o realizador não faz parte de uma “onda sul-coreana”, de tendência ou algo parecido. Mas que desde o início que viveu num domínio muito próprio. E, nem a propósito, em conjunto com esta estreia, chegam também ao cinema e ao Filmin Portugal três obras suas inéditas comercialmente, “Em Nome da Vingança” (2002), “Vingança Planeada” (2005) e “Sou Um Ciborgue, Mas Não Faz Mal” (2006) e, ainda, “Thirst – Este é o Meu Sangue”.