A melhor forma de adquirir conhecimento e saber mais sobre o mundo é ler. Foi a ler que me apercebi que é fácil ser-se aventureiro e arriscar quando se é jovem, mas é preciso ser-se extraordinário para o fazer na velhice. E quando digo que foi a ler que me apercebi disto estou a ser literal, visto esta ser uma paráfrase de André Gide, que a disse a propósito do risco que James Joyce correu ao escrever Ulisses. Ainda hoje uso esta citação de Gide em jantares, o que muito contribui para a minha reputação enquanto homem culto e admirado por todos (eu disse que ler era importante); o facto de omitir sempre que li a citação na contra-capa de Ulisses, mas só ter lido a contra-capa, também ajuda, porque as pessoas pressupõem que me dei ao trabalho de ter lido o livro.
É possível que na música não funcione assim, pelo menos na música popular e para o grande público, para quem alguém que já lançou 3 ou 4 discos é um pré-reformado, quanto mais um senhor de 80 anos que, supostamente, revolucionou o rock’n’roll com os drones que a sua viola de arco oferecia a essa locomotiva desgovernada e movida a heroína que eram os Velvet Underground.
Ocasionalmente, o mundo lá reconhece utilidade numa pessoa de idade: a digressão de regresso de Leonard Cohen foi um sucesso à escala global, embora aí o contexto tenha ajudado: Cohen admitiu que só voltou à estrada porque fora roubado das suas economias e o público respondeu enchendo os concertos. Numa escala mais reduzida, os vários discos da série American Recordings, de Johny Cash, viram o grande homem da country produzir o seu melhor material em idade avançada – a maior parte dos temas eram versões de outros, mas Cash tornou-as suas e a agrura da sua versão de Hurt (dos Nine Inch Nails) foi suficiente para este planeta rever em alta a sua cotação.
Haveria outros exemplos, mas são sempre exceções – tanto quem ouve apenas o que está nas tabelas de vendas ou quem se considera melómano tende a estar sempre à cata de novidades (os primeiros de forma mais passiva, os segundos de forma ativa). Porque haveríamos de ouvir três discos do mesmo autor se ao segundo já percebemos mais ou menos como ele escreve e entretanto há um jovem guatemalteco a misturar r’n’b com cumbia e death metal enquanto rapa sobre eletromagnetismo?
[“Noise of You”:]
Talvez às vezes seja necessário apenas dar um tempo (ir passear ao bilhar grande, passar uns anos a nadar em outras águas, mudar de rotinas) para voltarmos a sentir curiosidade por um artista – no meu caso, foi ao ver a lista de convidados de Mercy, o seu mais recente disco, que me perguntei o que raio poderia vir dali: em que universo pairaria um disco que reúne Laurel Halo, Actress, Weyes Blood, Sylvan Esso ou os Animal Collective?, perguntei-me. Será uma daquelas tentativas que por vezes os músicos idosos fazem, de se juntarem aos mais novos para ainda parecerem jovens e relevantes?
Não que isso alguma vez tenha preocupado Cale, que era o verdadeiro génio criativo dos Velvet, não no sentido de compor as canções, mas de as tornar mais do que três acordes. A solo, e depois de alguns discos no universo rock, a sua infinita curiosidade levou-o a todos os géneros: a folk de câmara de Paris 1999, a música sinfónica de Words for the Dying, a reescrita para piano suicida das suas (e de outros) canções clássicas em Fragments of a Rainy Season, a eletrónica em Wrong Way Up e, acima de todos os outros, a loucura macerante que enforma Music for a New Society, o seu disco de 1982, escrito quando estava a deixar a heroína, feito de música concreta (do som de máquinas de escrever ao de gaiolas a chiar, entra tudo ali) ao lado de esparsa instrumentação acima da qual se ergue uma voz arrancada aos infernos – um dos mais extraordinários álbuns da história da música popular.
Enquanto produtor trabalhou com toda a gente e mais alguma (de Patti Smith aos Happy Mondays), foi das estrelas de rock mais debochadas e impossível de refrear que a humanidade teve (ao ponto de um dia degolar uma galinha em palco só para ver a reação da audiência), o mais experimental e sem paciência nenhuma para consensos ou esconder emoções, e nunca mas mesmo nunca pediu desculpa. Embora devesse, pelo menos pela sua produção musical no século XXI.
Até hoje. Porque Mercy não é só tudo o que não imaginávamos que Cale produzisse – é um disco que mais ninguém criaria e um disco quer toda a gente devia ouvir. Não é o som de base que o torna inventivo – em geral assentam sob beats r’n’b ou herdados das técnicas do hip-hop ou dos laboratórios em que a eletrónica dos anos 90 e início dos 00s foi criada – é o que Cale fez com ela e o que fez com ela foi criar o seu disco mais escuro e indecifrável desde Music For a New Society – mas um Music For a New Society que não nos dá vontade de desaparecer pela Terra, um Music For a New Society mais suportável, assente numa droga ligeiramente mais suave que a heroína.
Mercy abre com a canção homónima, uma espécie de r’n’b atmosférico melódico e espacial, por cima da qual Cale arrasta a voz destruída (e talvez seja este detalhe que o aproxima de MFaNS); esta fórmula repete-se com pequenas variações da instrumentação que acompanha: em “Noise of You” são as cordas, por cima de toalhas de sintetizadores, a proporcionar o drama, cordas que depois regressam (na forma de violinos e violoncelos, a voz novamente arrastada) em “Moonstruck (Nico’s Song)”.
[“Story of Blood”:]
Na lindíssima “Story of Blood” (que conta com coros de Weyes Blood) Cale justapõe um par de notas de synth planante a um grande beat e oferece grande refrão soul; para o fim guarda uma canção extraordinária, “I know you’re happy”, com a maravilhosa voz de Tei Shi a juntar-se nele no refrão em que cantam “Can you save me?”. Não há ninguém ao cimo da Terra que esperasse um disco assim. (A última e arrepiante canção começa com a frase “If you jump out your window / I will break your fall” / Please don’t go”, antes de Cale se atirar a um falsete absolutamente inesperado e que faz o mais estranho dos contrastes com a vos cava dos coros. Ninguém esperava isto.)
As melodias estão ligeiramente diferente do que conhecemos em Cale – porque a música assenta em pequenos beats, as melodias são feitas para encaixar nesses beats, sendo mais curtas que o habitual – por vezes não mais que duas ou três notas de sintetizador, repetindo-se, antes de abrirem no refrão; Cale empilha pequenas melodias, que se sobrepõem, orbitam em torno umas das outras e enche o disco de ecos, coros, murmúrios, o que confere a Mercy uma tonalidade etérea, quase sobre-humana, como se fosse um disco vindo de um lugar longínquo, na vizinhança da morte.
Nenhum destes elementos é, por si só, inovador – e o que torna Mercy fascinante não é tanto como estes elementos encaixam mas como não encaixam: não estamos habituados a ouvir este tipo de beats serem acompanhados pelo tipo de voz que mais depressa atribuímos a um profeta alucinado e a queimar a última réstia de força que tem. Cale fala mais que canta e só canta quando as canções se aninham num lugar melódico onde a beleza pode surgir (sendo que, quando surge um refrão, uma pequena melodia catchy, nunca estamos à espera, não o antevemos). Numa das duas ou três canções em que é concedido algum destaque a uma guitarra (“The legal status of ice”, com os Fat White Family) a junção de eletrónica e guitarra cria uma espécie de gótico digital, e talvez Mercy seja isso: um algodão doce gótico e digital, que deixa um sabor amargo na boca.
O amargo, aqui, não é defeito – é que a dado momento percebemos que Mercy é uma espécie de balanço & contas antes de se fechar a loja, é Cale a arrumar a casa, a olhar para trás e dar conta dos erros, dos medos, dos tropeções. Na hora da despedida, os humanos por norma procuram o conforto do que conhecem – mas não Cale; fiel ao seu feitio, o galês prefere arriscar até à última.
Há-de morrer a cantar.