Nas bandas em que escreveu boa parte da história do rock’n’roll, aquela que ainda hoje insistimos em ouvir e em tentar reproduzir, nunca foi principal vocalista, “o cantor”, nunca foi o “frontman” nem o guitarrista virtuoso. Paradoxo absoluto: sem ele, não saberíamos da mesma maneira quanto vale uma harmonia no verso certo, um delírio antes do refrão, não teríamos a mesma consciência da preciosidade que representam três minutos e meio (ou mais, muitos mais, sobretudo ao vivo) numa vida. David Crosby, o homem que viveu para a canção seguinte, com tudo o que de maravilhoso e de terrível tal tarefa pode representar, morreu esta quarta-feira, 18 de janeiro, aos 81 anos.
A morte do compositor, cantor, guitarrista e produtor que fundou as bandas norte-americanas The Byrds e Crosby, Stills & Nash foi confirmada pela mulher, Jan Dance, ao site da revista Variety: “O seu legado continuará vivo por meio da sua música lendária”, disse um comunicado emitido pela família. A nota de imprensa acrescentou que David Crosby sofria de uma “doença prolongada” e que morreu enquanto estava “carinhosamente cercado pela sua esposa e alma gémea, Jan, e pelo filho Django”: “Embora ele já não esteja aqui connosco, a sua humanidade e alma bondosa continuarão a guiar-nos e a inspirar”.
“Paz, amor e harmonia para todos os que conheceram David e aqueles que ele tocou. Sentiremos muito a falta dele. Neste momento, respeitosamente e gentilmente pedimos privacidade enquanto lamentamos e tentamos lidar com nossa profunda perda. Obrigado pelo amor e orações”, termina o comunicado citado pela Variety.
Um provocador de talento desmedido
Dizíamos: nos Byrds e nos Crosby, Stills & Nash (aos quais se juntou Neil Young, em determinados períodos), nunca foi “um homem e o seu show”, mas de alguma forma foi sempre David Crosby sozinho, o paradigma da trindade demoníaca “sexo, drogas e rockn’n’roll”, a lição em carne e osso sobre o que não fazer, fazendo-o totalmente (seduzindo muitos para esse caminho, como inegável destino de quem recusa tudo a não ser o valor absoluto da eletricidade do rock em cada momento, em cada segundo). Foi construindo e destruindo, os dois verbos num tango difícil de dançar, até para o próprio.
Em 1971, David Crosby lançou o seu primeiro álbum a solo, If I Could Only Remeber My Name. Chegado a 1988, os quilómetros de canções, estúdios, palcos e de vida — já nessa altura, um caminho mais longo e recheado do que aquele que qualquer comum mortal alguma vez será capaz de experimentar — levaram-no a publicar uma primeira autobiografia, escrita com Carl Gottlieb, Long Time Gone. Uma segunda surgiria em 2007, chamada Since Then: How I Survived Everything and Lived to Tell About It. Mais recentemente, Cameron Crowe produziu um documentário biográfico sobre o músico, Remember My Name.
No início, como no fim, uma quase obsessivo pensamento consigo próprio, entre a insegurança e a crença inabalável, o seu valor enquanto músico, membro de uma banda, estrela de um circo rock’n’roll que não sabe parar; e o desafio constante de reconhecer falhas e exageros, dilemas familiares, tenebrosas relações com vícios vários e um ego em constante luta por alimento e, ao mesmo tempo, controlo. David Crosby, paradigma da expressão “génio”: um talento desmedido num corpo demasiado curto para o poder domar da melhor maneira.
Começou sozinho, filho de um reconhecidíssimo diretor de fotografia em Hollywood, Floyd Crosby. O star system desde cedo a rodeá-lo, o ainda jovem David a querer ter voz própria, a lançar-se nos clubes de Los Angeles, a conhecer os cantos a uma cultura pop que absorvia a folk contestária vinda da costa Leste, mas que do lado do Pacífico queria ser mais hedonista, suada e socialmente vivida. Com Roger McGuinn, Gene Clark e Chris Hillman forma os Byrds. São folkies e são rockers, são fãs dos Beatles e de Bob Dylan, a quem pedem emprestada “Mr Tambourine Man” para uma revisão que lhes daria um primeiro sucesso.
Pop quente, de calor californiano, com felicidade psicadélica em todos os cantos possíveis, tratados como “resposta aos Beatles”, mas destinados a outras contas. Na verdade, cada um dos músicos teria a sua matemática pessoal. Gene Clark haveria de sair, deixando a nu as tensões num grupo onde McGuinn mandava e Crosby se perdia entre tentativas para ter mais espaço para a voz, mais campo para a escrita que assinava. Tudo até 1967, ano mágico em que a cronologia pop baralha e volta a dar, ano decisivo em absoluto, também para David Crosby, que acaba despedido, como funcionário que não corresponde às expectativas. Obviamente demitido.
Anjo, demónio, glorioso homem falhado
Crosby agradece, alimenta-se de certezas próprias e forma a banda que, mesmo após cinco décadas, não precisa de mais do que a sigla CSN para ser reconhecida, com Stephen Stills e Graham Nash. Com o primeiro já se tinha aventurado em jams intermináveis, quando Stills ainda era o patrão dos Buffalo Springfield. No festival de Monterey fez questão de se deixar ficar em palco, seduzindo o futuro colega, enfurecendo a futura-antiga banda.
Com os britânicos Hollies em solo americano, ambos se entregam à capacidade impossível (ainda hoje é legítimo fazermos a pergunta “como é que estas vozes se encontraram?”) de Graham Nash em elevar a harmonia vocal de um trio a um nível possível apenas em desejos aparentemente irrealizáveis (como são todos os que alimentam os melhores episódios da história da cultura popular). Juntos fundaram a tal sigla e lançaram um álbum de estreia, homónimo, em 1969, que serve ainda de modelo para qualquer arranque.
Há 50 anos a música e os amigos salvaram David Crosby. Que bem soava esta Orquestra Rock & Roll
Fiquemo-nos aqui apenas pela parte de David Crosby, que ali deixou fixadas canções como “Guinnevere”, “Long Time Gone” ou “Wooden Ships”. A partir das colinas de Hollywood, do Laurel Canyon, para o brilhantismo em vinil. Na capa, três moços, um sofá e uma guitarra. Cantautores, nem mais, embrenhados neles próprios, numa América que já não esperava fugir ao pecado, que a ele se entregava e que nestes três tinha a melhor banda sonora.
Da mesma forma: um ano depois, 1970, Déja Vu, já com Neil Young, consideremo-lo como o melhor álbum de sempre, em qualquer momento que o entendamos fazer, e tal opção nunca poderá ser contrariada por uma alma que esteja de facto viva. Um sonho ácido entre florestas, desertos e pradarias de uma América que só se revelava à noite, ébria, descomprometida e, apesar de tudo, sonhadora, arrependida ao ponto de levar pecados antigos ao espaço onde eles têm as melhores medidas: nas canções. Um jogo de composição e harmonia inigualável. Invejemo-lo, admiremo-lo.
Nunca mais vimos e ouvimos David Crosby assim. Entre separações e reuniões, Crosby, Stills, Nash e Young permaneceram como uma identidade divina, apenas com a mortalidade como empecilho — ou então como motor para um ímpeto constante em busca do abismo. Fizeram mais dois álbuns, regressaram nos oitentas, nos noventas, no novo século, entre discussões e frases como “nunca mais”. Foi com Graham Nash que manteve ligação constante, o europeu a funcionar como diplomata de coração aberto. Os dois com voz de anjo terreno, Crosby como o diabo de canto hipnótico, que não fechou contas a solo (foi editando, quase sempre como motivo para subsistir, para não ser apagado), mas tendo sempre a certeza que nada seria como dantes. E então?
Uma constante busca pela impossível redenção
Preso uma vez, duas vezes. Porte de armas, posse de droga. O álcool e a cocaína. Um transplante de fígado como clamor pela sobrevivência. As mulheres como paixão incontrolável, mas muitas vezes como alvo de uma objetificação dolorosa. Pai de quatro filhos, nem sempre, mas sempre que pôde a partir do momento em que a idade lhe disse mais claramente que a aritmética do calendário haveria de ter um fim.
O futuro foi raramente (ou nunca, arriscamos agora dizê-lo) um rabisco no horizonte de David Crosby, que depois da inevitável implosão levou o músico a um percurso a solo não necessariamente como artista, mas como peregrino de uma espécie de deserto particular — a mesma travessia que lhe deu oportunidades criativas surpreendentes, como o reencontro com o filho que renegou no início da década que 60, o pianista James Raymond, e de quem muito mais tarde de aproximou, como troféu maior e inesperado.
Não fez previsões, desejou apenas manter o nome, na própria memória e na de todos quantos o adoraram enquanto músico, todos os que o questionaram enquanto fanático de uma vida tóxica, todos os que discordaram vezes sem conta de frases, atitudes, entrevistas e decisões que o mantiveram sempre à parte da lei das coisas da cultura popular. A mesma que desenhou e ajudou a definir, tal como a conhecemos hoje, a mesma que ameaça desaparecer com a saída de cena de iconoclastas como este, rock’n’rollers como este.