Os jornais oficiais da Assembleia da República dos últimos 50 anos estão na base da nova criação da atriz e encenadora Sara Barros Leitão, “Guião para um país possível”, a estrear-se em 08 de dezembro em Viana do Castelo.

A informação foi avançada à agência Lusa pela fundadora da estrutura artística Cassandra, que acrescentou ter iniciado em janeiro “o mergulho nesta nova investigação”, a leitura dos Diários da Assembleia da República dos últimos 50 anos, “que deverá durar seis meses”, após o que iniciará os ensaios do espetáculo.

“Guião para um país possível”, a estrear-se no Teatro Sá de Miranda, vai “dialogar” com os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e andará, entre janeiro e abril de 2024, numa digressão “num grande espetro nacional”, no ano em que se comemora o meio século da Revolução dos Cravos.

Com este espetáculo, de que assina o texto e a encenação, Sara Barros Leitão propõe “uma viagem pelos últimos 50 manos da democracia portuguesa” a partir daquela “lente muito específica” que é pública.

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Para isso, irá ler “o máximo possível” das transcrições diárias efetuadas todos os dias, habitualmente, por duas funcionárias que estão no hemiciclo numa mesa de madeira perdida entre a bancada dos deputados e a dos membros do Governo e que todos os dias escrevem “tudo o que é dito, nomeadamente reações, apartes, tudo o que possa contribuir para um retrato fiel do que acontece durante essas sessões”.

Os golpes de 11 de março e 25 de novembro de 1975, a guerra colonial, a descolonização, momentos de mobilização social, de maior contestação e maiores crises, os grandes discursos que foram feitos, à partes de que “já ninguém se lembra” ou “momentos insólitos”, como o ocorrido em novembro de 1987 quando a deputada italiana Ilona Staller, conhecida por Cicciolina, obrigou à interrupção do plenário depois de ter despido o peito nas galerias, contam-se entre os que Sara Bairros Leitão quer “resgatar” para o espetáculo, adiantou.

“É a colagem possível” do que aconteceu no parlamento e “que é também, de alguma forma, uma conquista da própria democracia, que consiste em termos um parlamento livre onde podem estar representados todos os partidos”, disse.

Questionada sobre outros episódios que pretenda retratar em “Guião para um país possível”, a artista afirma que “tudo o que estiver nos últimos 50 anos vai merecer atenção e reflexão”

A criadora está, porém, consciente de que não conseguirá colocar tudo o que gostaria, como lhe dita a experiência de trabalhos anteriores, assim como desconhece “que caminhos o espetáculo irá tomar”.

Só “o tempo e a criação” lhos ditarão, embora pretenda “olhar para alguns momentos que, nos dias de hoje, continuam sem estar resolvidos”, como os vários debates sobre o novo aeroporto de Lisboa ou aqueles em que se falou de eutanásia.

A autora de “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa” pretende também pôr em palco a “primeira vez que na Assembleia da República” foram pronunciadas determinadas palavras, como precário e colaborador.

“Porque as palavras são muito importantes e nós temos que lutar por elas”, frisou a autora, feminista e ativista assumida que, na vida pessoal e criativa, se tem batido contra o uso da palavra “colaborador” em vez de “trabalhador”.

“A palavra trabalhador vem de várias dezenas, centenas de anos, e da luta [dos trabalhadores] para conseguirem fazer valer os seus direitos. Trabalhador porque vende a sua força de trabalho”, sustentou, argumentando que “ao mudarmos as palavras, começamos a mudar os direitos e as conquistas que lhes estão associados”.

Coisas que “envelheceram mal, como discursos dos anos 1980 que hoje não poderiam ser feitos”, porque entretanto houve mudança, a evolução do parlamento em termos de género, ou se o aumento de mulheres no parlamento se “refletiu num tempo de fala” são outras das questões em que a autora irá “mergulhar” ao longo deste ano.

Espetáculo, com vários coprodutores, um dos quais o Teatro do Noroeste — Centro Dramático de Viana do Castelo, “Guião para um país possível” terá uma “digressão num grande espetro nacional” entre janeiro de abril de 2024, com apresentações em várias cidades, em datas ainda a ultimar, e que a autora espera agregar a comemorações locais da Revolução dos Cravos em Portugal.

“Guião para um país possível” não terá “um olhar saudosista” sobre o 25 de Abril de 1974, afirmou. Antes “um olhar do que aconteceu a partir desse dia”, nomeadamente que conquistas e retrocessos fomos alcançando.

A representar “Guião para um país possível” estarão João Melo e Margarida Carvalho, enquanto o “hercúleo” de pesquisa é coordenado por João Mineiro, sociólogo e antropólogo especialista em assuntos parlamentares, referiu a criadora.

A dramaturgia é de Carlos Alvarez, enquanto na cenografia, nos figurinos, no som, na luz e na montagem do espetáculo estarão trabalhadores com quem Sara Barros Leitão tem contado para os seus projetos, num total de 17 para este espetáculo.