É um fenómeno transversal a todas as classes sociais e está longe de se esgotar no caso de um “modesto pároco da aldeia a fugir à dureza da vida rural”. O perfil dos membros da Igreja suspeitos de terem praticado abusos sexuais sobre menores apresentam “várias dimensões” que os membros da Comissão Independente recomendam que se analise.

Para ilustrar a diversidade dos perfis distintos dos abusadores que chegaram à Comissão Independente através de centenas de testemunhos diretos de vítimas e pessoas que garantiam conhecer casos de abusos, foram apresentados esta segunda-feira, na Fundação Calouste Gulbienken, dois casos: o do pároco F. e do pároco P.

Caso F: o pároco que foi preso em França, mas voltou a Portugal (e à Igreja)

Nasceu em 1940 em Portugal e emigrou para França com a família. Estes dois momentos definiram o início da vida do pároco F. Após seguir para o seminário, foi ordenado sacerdote na década de 80. Depois, rebenta o escândalo: foi preso por “atividade sexual inadequada” contra dois rapazes de 11 e 13 anos. Foi declarado culpado com pena suspensa, sob obrigação de cumprir serviço comunitário e ser integrado na lista de agressores sexuais.

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O pároco F. deixou, por conseguinte, as funções religiosas. Para mais, a diocese francesa a que pertencia “pagou uma indemnização elevada às vítimas”. 

Após o fim do processo penal, o pároco F. volta a Portugal, à localidade onde vivia a família e onde tinha uma casa. Ora, o bispo local decidiu voltar a reintegrar na diocese o padre que havia sido condenado em França, embora tenha recebido a informação sobre o seu passado. Mesmo assim, o bispo português aceitou o regresso à vida religiosa do pároco F., porque este “gostava de trabalhar onde eram originários os seus familiares”.

Mais: em Portugal, o pároco F. não foi sujeito a qualquer “espécie de vigilância” relacionado com a “reincidência de abusos sexuais”, apurou a Comissão Independente.

A vida  do pároco F. sofre uma reviravolta quando aceita o convite para participar numa festa de comunidade portuguesa em França onde presidia a uma cerimónia litúrgica. Uma diocese francesa — não aquela a que o padre pertencera no passado — manifestou “preocupação” por o padre F. manter as suas funções em Portugal “apesar dos seus antecedentes criminais”.

A Comissão Episcopal Portuguesa (CEP) foi informada do sucedido e decidiu agir, desaconselhando que o pároco F. se mantivesse em funções. “Sei que isto custa a todos, mas não podemos arranjar mais atrapalhações para a Igreja Católica.”

Para a Comissão, este caso “sinaliza de maneira paradigmática” os diferentes “tipos de reação” no seio da Igreja Católica face às denúncias de abusos sexuais. “Privilegia-se as soluções locais ou nacionais a um fenómeno transnacional que atinge a Igreja Católica como um todo.”

Caso P: o pároco que realizava “exercícios de autoconfiança” e se relacionava com figuras públicas

O outro caso apresentado durante a revelação da Comissão Independente relaciona-se com um pároco — identificado como P. — que foi denunciado durante a elaboração do relatório três vezes por “abusos sexuais de extrema violência”, que incluíam “masturbação do próprio e dos abusados, toques, sexo oral e penetração”.

Contra o pároco P. foi já instaurado um processo administrativo-penal. Na base desta queixa, está um denunciante e testemunhas que falam na realização de alegados “exercícios de autoconfiança”.

As vítimas eram convidadas a ir à casa paroquial onde se desnudavam em frente ao espelho. Eram convidadas a permanecer nuas também em outros locais da casa. Também havia um exercício de nudez do pároco. Havia toques no pénis e masturbação”, apurou a Comissão Independente.

Adicionalmente, a Comissão suspeita que o número de abusados pelo pároco P. seja “substancialmente maior” do que o revelado no inquérito. As alegadas vítimas relataram que tinham conhecimento de “outros casos” de pessoas que terão participados nos tais exercícios de autoconfiança.

Sobre o seu perfil, o relatório indica que o “pároco P. possui um perfil sociocultural elevado e relacionava-se com figuras públicas, assim como figuras de um movimento católico considerados do ponto de vista teológico dos mais conservadores”. Dava-se também com um dos “sacerdotes mais populares entre os católicos no meio urbano com presença mediática”.