O secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE) atribuiu a mobilização dos profissionais do setor à insatisfação que os governos deixaram acumular admitindo que o ministro com quem se revelou mais difícil de negociar foi Tiago Brandão Rodrigues.

Em entrevista à agência Lusa, João Dias da Silva elegeu os concursos de colocação de professores, atualmente em negociação com o Ministério da Educação, como a matéria em que será “mais difícil” reunir consenso.

“É aquela área em que é mais difícil conseguir soluções em que todos se sintam bem, sobretudo porque fomos acumulando ao longo do tempo uma série de injustiças relativas”, justificou, citando como exemplo os professores que em determinado momento conseguiram, ao abrigo das normas vigentes, aceder à categoria de professor titular e, assim, obter “determinados lugares” nas escolas.

“Não é mais possível corrigir aquilo que foram as injustiças relativas daqueles que, não sendo professores titulares, não ocuparam essas vagas”, admitiu, concordando com os docentes que se sentem injustiçados e reconhecendo legitimidade a quem recorreu a uma prerrogativa da lei.

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Na opinião de Dias da Silva, a presente mobilização dos profissionais da educação para greves e manifestações em grande escala é mais fruto da insatisfação de muitos anos, em matérias laborais e salariais, do que da introdução de um novo fator na equação do descontentamento, o Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (Stop).

“Continuamos a ter o mesmo conceito, as mesmas ferramentas (na ação sindical), que vamos utilizando de forma diferente. A intensidade com que se está a usar agora também é decorrente da verificação daquilo que é a intensidade do desgosto e da insatisfação das pessoas”, considerou.

De acordo com Dias da Silva, as redes sociais possibilitam hoje um maior e mais rápido envolvimento na expressão e congregação desse descontentamento, mas as ferramentas básicas na luta sindical continuam a ser as mesmas: greves, vigílias, manifestações, concentrações, desfiles, cordões humanos.

Os governos, sublinhou, “deixaram acumular uma quantidade enorme de insatisfações” e hoje cada um “traz a sua insatisfação” e é “sindicalista de si próprio”, o que é “mais difícil de gerir”, admitiu.

FNE junta-se aos protestos dos professores. Propostas do Ministério da Educação são “poucochinho”

“Se pusermos 50 professores numa sala para cada um dizer o que quer, vamos ter, eventualmente, situações de contradição e de haver propostas que se contradizem. O papel dos sindicatos tem sido o de procurar ver quais são as reivindicações que podem servir a todos e não estabelecer reivindicações que possam colocar professores uns contra os outros. E é isto que tem de se evitar”, defendeu.

Ao e-mail da FNE chegam contactos de professores aposentados a exigirem que seja recalculado o valor da pensão, caso sujam avanços na contagem do tempo de serviço que os sindicatos querem recuperar.

“Os professores que estão a um ano da aposentação, de que forma é que recuperam esse tempo de serviço? Era preciso recalcular todos os salários que deveriam ter recebido e pagar-lhes esses salários que estão em atraso”, exemplificou, para demonstrar a complexidade dos processos. “É um problema que vai gerar mal-estar, porque não vai ser possível dar a todos aquilo que todos acham que tem direito”.

Apesar dos dossiers que persistem ano após ano, legislatura após legislatura, João Dias da Silva encara o futuro da educação com otimismo: “Acho que vai ser possível superar estes problemas e que vamos poder ter uma profissão em que as pessoas se revejam e em que dê gosto trabalhar na escola”.

Das lutas que travou à frente da FNE (UGT), muitas em parceria com outras estruturas sindicais, nomeadamente a Federação Nacional dos Professores (Fenprof, CGTP-IN)) e o independente SIPE, assinalou como principais conquistas o fim da divisão dos professores em duas categorias (professor e titular), bem como da Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC), para professores que já estão na carreira, além da vinculação de milhares de docentes e não docentes.

Por concretizar, entre outras matérias em cíclica negociação com o Governo, ficou a criação de uma carreira específica para os trabalhadores não docentes, também reclamada por sindicatos da CGTP.

Tiago Brandão Rodrigues foi o ministro mais difícil

João Dias da Silva, que em maio deixa a liderança da FNE, num congresso eletivo a realizar em Aveiro, negociou com oito ministros ao longo de duas décadas, mas o mais difícil, admitiu, foi Tiago Brandão Rodrigues.

“Eles difíceis de lidar são todos! Eventualmente, poderia dizer que o mais difícil foi o ministro Tiago Brandão Rodrigues, porque se refugiou na ausência de disponibilidade para conversar”, contou o sindicalista.

Licenciado em filologia românica pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dias da Silva, assumiu a liderança da FNE em 2004 e defendeu matérias que afetam docentes e não docentes junto de oito titulares no Ministério da Educação: David Justino, Maria do Carmo Seabra, Maria de Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada, Nuno Crato, Margarida Mano, Tiago Brandão Rodrigues e João Costa.

“Com qualquer um dos outros ministros, por muito grandes que fossem as diferenças que tínhamos de perspetiva e de soluções, foi sempre possível conversar, dialogar, às vezes aquilo que se diz ´partir pedra´ – nem sempre chegando a resultados—, mas era possível conversar. Tinham disponibilidade para conversar, para ouvir, para contrapor as suas perspetivas. O mais difícil, porque não era possível ter este tipo de relacionamento, de partilha de perspetivas, foi o ministro Tiago Brandão Rodrigues, porque realmente refugiava-se na ausência”, confessou.

Ao avaliar a evolução da carreira docente e os impactos que sofreu nos últimos anos, considerou que até ao início do milénio o percurso foi de afirmação da profissão, “de crescimento e de valorização salarial e de reconhecimento”, o que passou pela criação do Estatuto Carreira Docente (ECD).

“Foi um avanço muito grande, o reconhecimento dos professores nos topos salariais, o trabalho no sentido da determinação das especificações, do perfil do profissional”, sustentou.

A partir dos anos 2000, observou, há uma mudança de rumo, para uma perspetiva mais económica, “mais virada para a avaliação de resultados, mais gestionária”, com “diminuição” do reconhecimento dos professores.

“Não podemos esquecer que antes de terminar o milénio, a educação era a paixão. Hoje em dia, a paixão desapareceu dos programas eleitorais dos partidos. Ainda na última campanha eleitoral, há um ano, a educação esteve praticamente arredada do palco e das preocupações”, referiu Dias da Silva.

As tensões começaram a acumular-se e atingiram o “ponto forte” em 2007, com as alterações ao Estatuto da Carreira Docente e a tentativa de dividir os professores em duas categorias (professor e professor titular e o “crescimento do tempo de trabalho para além do aceitável”, na opinião de Dias da Silva, partilhada pelos restantes sindicatos.

“Houve ali um período em que se começou a sentir que havia outras orientações, que alguns diriam mais neoliberais ou de algum neoliberalismo na gestão dos profissionais da educação e do sistema de ensino”, acrescentou.

Essas orientações levaram, segundo o dirigente, a uma desregulação do tempo de trabalho dos professores, mas refletiram-se também na alteração do regime de aposentação e no alongamento da carreira, consagrado na última revisão do ECD, sob a tutela de Isabel Alçada.

Os professores conseguiram acabar com a divisão da carreira em duas categorias, mas somaram-se insatisfações. “O 5.º e o 7.º escalões, as quotas para atribuição de Muito Bom e de Excelente [na avaliação de desempenho]”, enumerou, acrescentando os problemas que afetaram as carreiras da administração pública, como o congelamento na progressão, a redução de salários e o corte de subsídios de férias e de natal.

“Depois tivemos a troika em cima, o crescimento da precariedade, os professores cada vez mais precários, e a ausência de medidas de valorização da carreira”, lamentou.

Em 2018 chegou ao fim do congelamento da carreira, mas “sem a consideração do tempo que esteve congelado”, o que ainda hoje está na base das reivindicações que têm levado milhares de professores às ruas, acompanhados de não docentes, mobilizados para greves e protestos em todo o país.

“Há aqui uma situação que é coincidente com os meus mandatos que é claramente de uma alteração do posicionamento social em relação à profissão docente, ao seu lugar na sociedade, à sua valorização/desvalorização, precariedade e dificuldade em recrutar novos profissionais”, concluiu o secretário-geral da FNE, que passará o testemunho ao sucessor a eleger no congresso agendado para 20 e 21 de maio.

Um clássico na educação que não gosta de adjetivar o sindicalismo

Nos próximos meses, a FNE discutirá assim a sucessão de João Dias da Silva, sendo potenciais candidatos ao cargo de secretário-geral os presidentes dos sindicatos de professores da Zona Norte e da Zona Centro.

“É um debate que deverá agora ocorrer nos próximos tempos”, adiantou referindo que tudo está ainda em aberto.

Questionado sobre o sucessor respondeu: “Qualquer presidente de um sindicato, o presidente do Sindicato da Zona Norte, o presidente do Sindicato dos Professores da Zona Centro, o Pedro Barreiros, o Manuel Teodósio (respetivamente). Há outros sócios destes sindicatos que também têm perfil para poderem vir a ser secretário-geral. As direções dos sindicatos discutirão e saberão encontrar a pessoa certa para o lugar”.

“Não temos feito esse debate. Temos estado tão ocupados com todas estas matérias de contestação e de negociação que temos adiado o debate que deve existir entre os sindicatos para que identifiquem, entre si, qual a pessoa que deve ser secretário-geral, um dirigente ou uma dirigente”, acrescentou.

A sucessão será decidida no Congresso da FNE, em Aveiro, a 20 e 21 de maio. A Federação congrega 10 sindicatos quatro no continente, dois nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, três de não docentes e o Sindicato dos Professores das Comunidades Lusíadas.

Quanto ao seu futuro pretende continuar ligado à associação que a FNE tem para a Formação e Investigação em Educação e Trabalho, a AFIET. “Vou continuar a estudar, a ler e a contribuir com trabalho. O tempo não vai ser só para hobbies”, avisou.

Tenciona também cumprir o mandato como conselheiro do Comité Económico e Social Europeu, até 2025.

Professor de português-francês, João Dias da Silva também trabalhou diretamente com alunos entre 1972 e 1996. Coleciona selos e ouve música clássica, mas não gosta do adjetivo “clássico” aplicado ao sindicalismo.

Quando lhe perguntam que impacto tem no sindicalismo clássico a entrada em campo do Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (Stop) ri-se: “Tenho andado a pensar que adjetivos é que podemos colocar aqui…Agora os mais antigos são os clássicos, como os carros, está bem!”

O secretário-geral da FNE licenciou-se em filologia românica, “um curso que já não existe”, lembrou a propósito do percurso que o levou ao sindicalismo.

“Uma pessoa ia trabalhar e sindicalizava-se. Fazia parte da vida das pessoas em todos os setores, estar a trabalhar e estar sindicalizado. Mal foram constituídos os sindicatos, a seguir ao 25 de Abril, sindicalizei-me. Era o que era adequado fazer-se”, recordou.

Começou a dar aulas na Escola Industrial de Ovar, passou pelo Liceu de Matosinhos, pela Escola Industrial e Comercial de Gaia, pela Secundária de Paredes e pela de Rio Tinto. É quadro da Escola Secundária de Valongo. “Andei por aí, não muito longe. Não tive a precariedade que os meus colegas hoje têm”, admitiu.

Foi convidado para integrar a direção do Sindicato dos Professores da Zona Norte e chegou em 2004 à liderança executiva da federação. Ser professor foi uma opção “claramente afetiva”, nas palavras de Dias da Silva, para quem a sala de aula foi sempre o que mais o preencheu: “O trabalho com os alunos, vê-los crescer, ajudá-los, acompanhá-los no seu processo de crescimento. É sempre uma relação muito forte”.

Sente saudades da sala de aula e do trabalho colaborativo com os outros docentes. “Hoje em dia, as escolas deixam muito pouco espaço, poucas condições, para este trabalho, que é essencial”, lamentou.

Ainda não tem tempo para hobbies, como voltar a organizar a coleção de selos que iniciou na juventude e à qual promete dedicar atenção quando se aposentar da liderança sindical. Nos tempos livres, o ainda secretário-geral, gosta de ver filmes e de ouvir música, clássica, “preferencialmente”.