O drama indie “Para Leslie”, que se estreia esta quinta-feira nas salas portuguesas, será um dia um daqueles nacos de curiosidade que os cinéfilos prendem na lapela, convictos de que os faria ganhar um “Quem Quer Ser Milionário” ou um não menos competitivo Trivial Pursuit entre amigos. E a trivialidade é: “que atriz ia perdendo a sua nomeação para um Óscar por causa de um alegado escândalo de lobbying?”. Escândalo é uma palavra exagerada, mas enfim, é do léxico próprio das perguntas rápidas. Toda a conversa em torno da atriz Andrea Riseborough e de como terá chegado à nomeação para um prémio da seleta Academia foi a primeira introdução que tivemos a “Para Leslie”, um filme de baixo custo que fez um bom percurso nos festivais, mas que ainda não tinha chegado ao lote de nomeados para prémios do meio.

Os detalhes desta tal acusação de lobbying são confusos para um leigo, sobretudo se tivermos em conta que toda a Hollywood funciona nessa base. Quem conhece quem, quem tem a melhor cunha, quem tem a agenda telefónica mais bem composta. E acaba por ser uma pena que o discurso sobre este filme fique assim manchado, praticamente inutilizando as já escassas hipóteses de levar o prémio para a after party. É que sim, Andrea Riseborough vai mesmo bem, interpretando talvez a melhor personagem alcoólica do cinema desde Nicolas Cage em “Leaving Las Vegas”. E sim, passaria despercebida na espuma de outras atuações de renome, já que se trata de uma britânica com experiência sobretudo em teatro e séries no seu país natal, a fazer uma primeira obra de um novo realizador.

[o trailer de “Para Leslie”:]

O ponto de partida para este drama é simples, mas com impacto: Leslie é uma mãe solteira do Texas que vence a lotaria local, ganhando um cheque de 190 mil dólares. Porém, este dinheiro não só não lhe resolve a vida como acaba por a destruir, já que Leslie é uma alcoólica que depressa estoura os seus inesperados fundos. A ação do filme, tirando um breve trecho do genérico, passa-se seis anos depois, com Leslie em plena rota de autodestruição, pobre, bêbada e vexada. O facto de não vermos esses seis anos, de passarmos diretamente da celebração (apesar do olhar desorientado, até aí, do filho, na altura com 13 anos) para o fundo do poço, é o mecanismo mais interessante do guião, por colocar no espectador o puzzle de encontrar ou adivinhar o que de tão errado terá acontecido nessa franja de tempo. O resultado final é uma saga de vergonha e de arrependimento, de mão dada com a solidão e um certo sentimento de injustiça. Leslie tenta reatar com o filho, fazer as pazes com ex-amigos, aproveitar um emprego caído do céu como empregada da limpeza de um motel. Só que este é um filme sobre falhar, perante os outros, mas, sobretudo, perante a própria.

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“Para Leslie” é, assim, um drama triste, amargo e cru. Estreia do realizador Michael Morris, é baseado na história real do guionista Ryan Binaco e na relação deste com a mãe. Foi gravado em 19 dias, em plena pandemia, com um orçamento abaixo de um milhão de dólares. Terá sido, aliás, esse parco orçamento que terá deixado a distribuidora Momentum Pictures sem fundos para uma campanha de marketing, tendo de recorrer ao burburinho estratégico junto de atores e atrizes de renome, todos unânimes no elogio a Riseborough. Mas a atriz, apesar do seu claro e merecido destaque na personagem-título, não carrega tudo sozinha às costas. É que para um filme sem meios, o elenco é até bastante reputado: tem Allison Janney, que já ganhou um Óscar de Melhor Atriz Secundária em 2018 por “Eu, Tonya”; tem Marc Maron, voz de um dos mais respeitados podcasts do mundo (o “WTF with Marc Maron”, por onde até já passou Obama) e presença recorrente em especiais de stand up da Netflix; tem Stephen Root, que ganhou um Emmy pelo seu desempenho em “West Wing”. Todos ajudam a dar credibilidade a esta pequena vila no Texas, onde todos se conhecem, na pior aceção possível do termo.

Há uma tentativa, aliás, para fazer parecer que “Para Leslie” é uma espécie de OVNI inesperado na galáxia dos Óscares. Mas o tom e a estética não são diferentes de outros filmes indie amplamente nomeados, como “Manchester By The Sea”. Até faz lembrar, pela franja da população retratada, “Nomadland — Sobreviver na América”. Além disso, o desempenho de Riseborough é tudo o que a Academia gosta: transformação física aliada a uma personagem densa, por vezes histriónica, outras vezes contida.

“Para Leslie” é, na maioria das suas duas horas, um retrato franco e sem condescendência sobre a adição. Mas acaba por ser, no fecho do seu terceiro ato, penalizado pelo final apressado. Isto não quer dizer que todas as tragédias têm de acabar segundo uma fórmula, especialmente aquelas sobre um vício que dura a vida toda. Quer apenas dizer que um filme tão realista não pode ser tão simplista no remate para aquela personagem. Tirando isso, é um filme sólido e bem conseguido. É mais estranho termos de levar com nomeações da sequela do “Top Gun”.