[Alerta Spoiler: este artigo contém detalhes sobre o primeiro episódio da quarta temporada de “Succession”. Se não os quer conhecer, não leia]
Quem são “Os Monstros” que dão título ao episódio com que “Succession” regressa para a investida final? Os filhos, Kendall, Shiv e Roman, que finalmente se unem e criam o seu próprio negócio, concorrente ao do pai? A quem Logan e os acólitos da administração continuam a referir-se como “the kids”, como se se recusassem a ver quanto cresceram e tornaram ameaçadores?
Ou será que dizem respeito ao próprio Logan e a Nan Pierce, líderes respetivamente de Waystar e Pierce Global Media, impérios rivais na televisão e nos media tradicionais, velhos tubarões que se preparam, enfim, para sair de cena num mundo que já não lhes pertence? Ou os monstros no horizonte de uma América em véspera de eleições, de um tempo que caminha para o extremar dos jogos violentos do populismo? Os monstros. Quem são e o que querem levar?
Talvez seja nostalgia precoce nossa (como a nostalgia quase sempre é), mas parecem ter chegado sentimentos aos escritórios envidraçados no World Trade Center, apartamentos e mansões cada vez sumptuosos da galáxia Roy. Na mensagem enviada pela HBO à imprensa, o próprio criador Jesse Armstrong confessa-se triste pela “tolice” de ter de encaminhar as personagens para o fim.
E, se este primeiro episódio da contagem final começa com aquele cinismo habitual que poderíamos usar para afiar facas – Logan a espumar de impaciência com os convidados que lhe cantam, aprumadamente, os “parabéns a você”, ou Shiv sempre a dar uma no cravo e outra na ferradura, com um salto alto fincado na trincheira dos irmãos e outro na do pai – logo começam os sinais de que algo pode ter mudado em “Succession”.
Não é só que os filhos tenham, finalmente, assumido a saída da Waystar, que Marcia tem ido para Milão fazer compras “definitivamente” ou que Shiv e Tom se tenham separado – todos esses fios de falsidade que prendiam as aparências aos lugares aonde deveriam estar. É aquele momento de tensão em que, à espera de notícias sobre a oferta decisiva pela PGM, Logan olha para o que lhe resta de entourage em volta e pede que lhe contem uma piada. É essa discreta confissão de solidão, da falta da camaradagem mais mínima, que o leva a refugiar-se, pela primeira vez, na inépcia de Greg – “Greggy”, diz ele, com aquilo que em Logan equivale a um momento quase obsceno de ternura – porque, ao menos, é autêntica. Não diz apenas o que pensa que ele queira ouvir.
É a telegráfica confissão da derrota, em alta-voz, depois do braço-de-ferro com os filhos. É aquele momento final, sozinho na sala, diante da “velha” TV, vendo as notícias, o grande e tradicional membro da “família”, nos últimos 60, 70 anos. O telefonema exigindo mudanças num canal que se prepara para vender dali a dois dias. Porque Logan, o velho mundo, afinal talvez tenha mesmo algum amor a alguma coisa. Ao que construiu. A esse tempo cujo crepúsculo todos assistimos hoje, em diferentes graus, sem saber se lhe acudir, dar o golpe de misericórdia ou fugir para não ficar debaixo da nuvem de estilhaços.
E são Shiv e Tom, o casal menos apaixonado e apaixonante da história da TV, e que, agora, nos dão uma das mais belas cenas de toda a série – e, certamente, também das mais humanas. Bergmanianos. Num apartamento onde já nem o cão a reconhece, os dedos das mãos ainda a querer entrelaçar-se perante a constatação do fracasso. Shiv e Tom, o casal-modelo a contrario sensu e com quem agora, de repente, quase apetece chorar, a verem o sol a pôr-se sobre essa outra velha instituição tão fora de tempo: o casamento.
Serão esses os monstros? Os monstros na nossa cabeça? As carcaças de quem fomos e ainda vagueiam, rangendo?
Também eles precisam de amigos.