Charlotte Brontë descreveu a sua irmã Emily, autora do clássico O Monte dos Vendavais, como tendo “um poder secreto e um fogo que podia ter formado o cérebro e alimentado as veias de um herói”. Não sei se Emma Mackey, que interpreta Emily Brontë em “Emily”, filme de estreia como realizadora de outra atriz, a australiana Frances O’Connor, leu estas linhas. Mas ela personifica a infortunada escritora como estando cheia desse fogo e desse poder que a sua irmã mais velha, e autora de Jane Eyre, outro título imortal da literatura inglesa, detetou nela. Há momentos na fita onde Mackey parece que vai incendiar o ecrã apenas com o olhar.  

[Veja o “trailer” de “Emily”:]

Emma Mackey sucede, no papel de Emily Brontë, a atrizes como Ida Lupino, que a personificou no velhinho “Dedicação” (1947), de Curtis Bernhardt, onde as duas outras irmãs, Charlotte e Anne, são vividas por Olivia de Havilland e Nancy Coleman; e à francesa Isabelle Adjani em “As Irmãs Brontë” (1979), de André Téchiné, que estava acompanhada por Isabelle Huppert e Marie-France Pisier (há ainda um telefilme de 2016, “The Brontë Sisters: Walk Invisible”, nunca exibido em Portugal, em que ela foi interpretada por uma atriz menos conhecida, a escocesa Chloe Pirrie). E a verdade é que deixa a Emily romântica de Lupino e a nevrótica de Adjani a milhas.

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[Veja uma entrevista com Emma Mackey:]

Frances O’Connor oscila entre um esforço de autenticidade na localização da história (o filme foi rodado em Haworth, no Yorkshire, onde a família Brontë viveu, e cuja paisagem e meteorologia deixaram a sua impressão na vida e a obra literária das irmãs), na recriação da época, na caracterização das personagens e da relação especial entre as três Brontë e o seu único irmão, Branwell (ver os mundos fantasiosos e as narrativas que imaginavam em conjunto), e uma interpretação pessoal do mundo interior, da vida emocional e da psicologia de Emily Brontë. O que a leva a tomar a maior liberdade do filme, envolvendo Emily num romance que na realidade nunca existiu, com o pároco e seu explicador de francês, William Weightman (Oliver Jackson-Cohen). Este poderá, isso sim, ter-se envolvido com a irmã Anne.

[Veja uma cena do filme:]

A realizadora (que podia ter-se contido um pouco mais no uso da câmara à mão) contorna as situações feitas do filme biográfico (embora não resista a abrir com a morte de Emily, ou a mostrá-la a começar a escrever O Monte dos Vendavais), e não anda à procura de tirar retroativos feministas da história da escritora, nem de cultivar piedades românticas. E Emma Mackey é hipnótica numa Emily Brontë reservada e avessa à vida social, rebelde e intimamente arrebatada, hipersensível e cheia de ímpeto criativo, que não consegue, tal como Charlotte e Anne (interpretadas por Alexandra Dowling e Amelia Gething), adaptar-se ao que os costumes e as convenções da época pediam às jovens mulheres, preferindo seguir o irmão Branwell (Fionn Whitehead), mais próximo dela em temperamento, nos desvarios cada vez mais danosos deste, e com o qual terá até tomado ópio.

Imprecisões e omissões (pena que não haja uma referência a Keeper, o enorme e fidelíssimo cão da escritora, que ela desenhou e pintou), liberdades dramáticas e ocasionais erros à parte (quando Emily Brontë recebe a primeira edição de O Monte dos Vendavais, os livros vêm com o seu nome, quando na realidade foram originalmente publicados com o seu pseudónimo Ellis Bell), “Emily” é uma intensa, sensível e empática tentativa de retratar em filme uma figura que tem sido um desafio para todos os seus biógrafos. E de transmitir, através de Emma Mackey, o arrebatamento interior, a força de carácter, a riqueza de sensibilidade e a singularidade da alma inquieta que foi Emily Brontë.