Há um momento em “Selective Outrage”, o novo especial Netflix de Chris Rock, em que o humorista entra numa espécie de diatribe cuja tese é que hoje toda a gente parece querer ser vítima, o que, diz, acaba por diminuir a importância que damos às verdadeiras vítimas. Para exemplificar: ele lembra o caso de Meghan Markle (esposa de Harry, o príncipe inglês), que terá demonstrado, em entrevista, ter ficado chocada ao descobrir que a coroa britânica era (na sua opinião) racista.

“A sério?”, espanta-se Rock, “tu ficaste surpreendida por a coroa britânica ser racista? Os tipos basicamente inventaram o esclavagismo e o imperialismo e ficaste surpreendida?”, continua Rock – e antes que digam que não foi exatamente assim, é possível: estou a citar de memória. O ponto mantém-se: ninguém brinca à luta de classes como os britânicos – na maior parte dos países existem os ricos, os pobres e a classe média, mas os britânicos são tão minuciosos com a sua luta de classes que criaram, entre os pobres e a classe média, a working class. E se pensam que a working class é o mesmo que pobres, não, não é; e se pensam que é o mesmo que classe média, não, não (a middle class pode ser licenciada, a working class não e vem de bairros complicados).

Não admira, portanto, que de tempos a tempos haja, no Reino Unido, surtos de eclosões mais histriónicos daquilo que ficou conhecido por guerra de classes. Na música ninguém foi tão claro como os Sex Pistols – por muito que queiramos ver a ascensão dos Pistols como um brilhante golpe de marketing, não é um acaso que o punk inglês tenha surgido numa época em que a clivagem entre as classes se acentuou.

[“Yum”:]

Quase toda a obra cinematográfica de Ken Loach é dedicada ao tema; na literatura, embora de forma menos panfletária, o tema está no cerna de obras fundamentais, de Oliver Twist (de Charles Dickens), que explora o tema da pobreza e das dificuldades dos membros da working-class, a “Middlemarch”, de George Eliot. Se sairmos do romance e formos para o ensaio temos obras como The Road to Wigan Pier, de George Orwell, que documenta as suas experiências junto da working-class do norte de Inglaterra dos anos 1930.

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É claro que a) estas manifestações da guerra de classes não são exclusivas da música; b) a música nunca mais largou o tema, embora haja épocas e contextos mais ou menos propícios – e agora estamos de novo num ciclo de combate entre os que têm menos e o que têm mais, um combate amplificado pelo fosso cada vez maior entre ricos e pobres, à medida que a desigualdade atinge níveis históricos.

Prognósticos só depois do jogo, dizia o poeta – mas devíamos ter adivinhado que mais cedo ou mais tarde ia surgir alguém como Slowthai, com um disco de estreia como Nothing Great About Britain, que surgiu em 2019 para espanto e gáudio da crítica, admirada com a visão implacável que o rapper tem sobre a política social britânica, sobre ser uma pessoa comum em Inglaterra – o tema que permanece central na obra de Slowthai, mesmo agora, em Ugly, o seu novo disco.

[“Feel Good”:]

Não foi só o Reino Unido que ficou de olhos esbugalhados com a mistura idiossincrática que Slowthai promove, unindo grime e punk e hip hop e UK Garage num género único, marcado pela sua voz agressiva – por vezes as suas canções recordam o momento em que os Prodigy explodiram, só que em vez de querer pôr as pessoas a dançar, Slowthai quer pô-las a pensar (e, eventualmente, partir coisas). O The Guardian chamou a Nothing Great About Britain um retrato vívido e implacável sobre a Grã-Bretanha pós-Brexit”; enquanto para a Pitchfork “o brilhantismo de Slowthai reside na sua capacidade de descrever, com um sentido de humor seco, a dificuldade de sobreviver na austeridade britânica”. Sim, apesar da voz gutural e da violência sonora nas canções de Slowthai há aqui humor – um humor escuro e derrotista, o humor de quem se ri na derrota.

A voz talvez seja a primeira coisa em que notamos, antes de pararmos para ouvir o que ele está a dizer; mas este não é um daqueles casos em que as qualidades literárias estão muito acima da música praticada – não é pop feita para literatos, nem é um produto, é Do It Yourself de quem tem uma guitarra ligada a um laptop no quarto – meia dúzia de plug ins, um microfone e é tudo o que Slowthai precisa para produzir faixas que soam a tudo e a ninguém, exceto a ele próprio: a fusão das batidas com as explosões das guitarras não são uma fórmula nunca praticada, mas a facilidade com que casam com a voz tornam a experiência única: é como se estivéssemos fechados no quarto com ele, enquanto ele se lança num rant imparável contra o seu desemprego, a sua desesperança.

Talvez ele não nos canse porque nada aqui é tão simples quanto batida + guitarra + voz a rosnar – em “Sonner”, a terceira faixa desse tremendo achado que é “Ugly”, a batida lembra “Lust for Life”, de Iggy Pop, há harmónicos de guitarra a entrar e sair da canção, que começa com a expressão “No money” e, pelo caminho, nos presenteia com “Sometimes I think about killing myself”. No refrão, a guitarra tem um toque soul inesperado, trazendo uma leveza que contrasta com a letra (em que ele se descreve como “Dragging my feet” pela vida). É quase pop em momentos, podia estar em todas as rádios e é perfeita de uma forma apenas explicável com adjetivos de modo sobrepostos e empilhados até criarem uma torre de elogios histéricos.

[“Selfish”:]

“Sooner” é a demonstração do que pode acontecer quando se oferece a alguém talentoso as condições para gravar a música que ouve dentro da sua cabeça – cada pormenor, (agora) imaculadamente gravado, não existe por acaso, desempenha um papel determinado: em “Feel good” a linha de baixo pesadona sustenta a canção, apoiada num beat que vive do tipo de pontualidade que a CP nunca conseguiu; e nisto há palmas e coros, uma pequena linha de sintetizador que exerce um enorme magnetismo sobre os nossos ouvidos e porque é que, minha gente, porque é que a rádio não passa isto?

Ugly pode ser uma versão aprimorada das qualidades de Slowthai – quer dizer, quantas pessoas seriam capazes de escrever “Falling”, guitarras abrasivas que parecem saídas de uma canção dos Sonic Youth, e uma voz de quem passou demasiado tempo num quarto com humidade, a berrar com a segurança social ao telefone pelo atraso no pagamento do subsídio de desemprego? Ugly, dizia eu, antes de me perder a descrever “Falling”, pode ser uma versão aprimorada das qualidades que Slowthai sempre exibiu – mas isso não invalida que ele sempre tenha exibido as ditas qualidades.

O talento estava lá, logo em Nothing Great About Britain, em canções como “Crack”, um retrato pejado de desespero e destruição sobre o vício e como ele destrói comunidades, ou “Gorgeous”, um raro momento de ternura, com uma melodia doce de guitarra, dedicado à mãe do rapper. E estava, em Tyron (o segundo disco de Slowthai), em “MAZZA”, a colaboração com A$AP Rocky, com um refrão viciante, ou “WOT”, um daqueles momentos em que Slowthai pode ser passado numa festa.

[ouça o álbum “Ugly” na íntegra através do Spotify:]

Nos últimos anos houve um par de artistas a usar a eletrónica, o hip-hop e as palavras para criar narrativas centradas na luta de classes (ou outras questões de direitos), em particular Kate Tempest e Little Simz (se nos circunscrevermos a Inglaterra). Slowthai junta-se agora a esta galeria, a dos que a partir do seu quarto, com um sample, um laptop e um microfone, se sentam à janela, veem o bolor nas paredes, o desespero lá fora, e transformam a miséria em beleza.

A nós, meros ouvintes, cabe-nos admirar, cientes de que o que está aqui a ser cantado é real e há quem padeça dos males descritos nestas canções.