Por um lado, um Mein Kampf assinado por Hitler, dois quadros pintados pelo líder nazi e várias estátuas de ditadores de regimes fascistas, tudo na posse de Harlan Crow, um milionário republicano. Por outro lado, várias viagens de avião e iate privados, estadias em resorts exclusivos e viagens de família, tudo oferecido pelo magnata ao juiz do Supremo Tribunal Clarence Thomas.

O republicano Harlan Crow, que, ao longo de 25 anos, fez donativos a Clarence Thomas, possui uma coleção de memorabilia nazi, avançou o jornal Washingtonian. A informação foi publicada depois de, na sexta-feira, o juiz do Supremo Tribunal ter sido notícia por não ter declarado as prendas recebidas pelo seu “amigo próximo”.

Uma fonte anónima afirmou ao Washingtonian que ainda não conseguira esquecer a coleção de memorabilia nazi em casa do magnata Harlan Crow, no Texas. “Teria ajudado ter alguém a explicar o significado de todos os itens”, afirmou. “Sem o contexto, apenas suspiras quando entras na sala.” Além das recordações nazis, a fonte explicou que o homem republicano tinha várias pinturas “feitas por George W. Bush junto de uma de Norman Rockwell ao lado de uma de Hitler”. Harlan Crow terá ainda uma cópia do livro Mein Kampf assinada por Hitler.

Os símbolos fascistas na sala de Harlan Crow vêm complementar as recentes notícias referentes às prendas do republicano a Thomas Clarence. Isto porque, em 2019, segundo o The Guardian, o juiz escreveu que os argumentos a favor do direito ao aborto derivam de teorias ligadas à eugenia (seleção dos seres humanos com base nas suas caraterísticas hereditárias), defendida por Hitler e pelos nazis.

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Em 2014, o Dallas Morning News avançou que Harlan Crow tinha ficado “visivelmente desconfortávelquando confrontado com questões relativas à sua coleção de estátuas e itens relacionados com Hitler.

Uma amizade (recheada de prendas) que dura há 25 anos

Na quinta-feira, o site ProPublica explicou como, ao longo de mais de 25 anos, o juiz Clarence Thomas, do Supremo Tribunal de Justiça, recebeu vários presentes do  republicano Harlan Crow — que incluíram viagens em aviões e iates privados e estadias em resorts exclusivos.

Na sexta-feira, o juiz explicou que tinha sido informado que a “hospitalidade pessoal” oferecida por Harlan Crow não tinha de ser oficialmente detalhada, de acordo com as regras éticas do Supremo Tribunal. “Esforcei-me por seguir este conselho durante todo o meu mandato”, disse Clarence Thomas, segundo o The Guardian. “E procurei sempre cumprir com as diretrizes estipuladas.” O juiz conservador de 74 anos é atualmente o mais antigo em funções no Supremo Tribunal, tendo sido nomeado por George W. Bush em 1991.

“No início da minha carreira no tribunal, procurei orientações junto dos meus colegas e de outros membros do sistema judicial e foi-me dito que este tipo de hospitalidade pessoal de amigos próximos, sem assuntos no tribunal, não eram para declarar”, afirmou Clarence Thomas, segundo o jornal britânico.

O juiz do Supremo Tribunal afirmou ainda que Harlan e Kathy Crow faziam parte do seu grupo de amigos mais próximos, com quem ele a mulher tinha feito “várias viagens de família”. O milionário terá doado meio milhão de dólares (458 mil euros) a um grupo do tea party (movimento conservador dentro do partido republicano) fundado por Ginni Thomas, que terá pago o salário de 110 mil dólares da ativista de extrema-direita e mulher do magistrado.

Um dos autores do ProPublica explicou na rede social Twitter qual a regra violada por Clarence Thomas ao receber donativos: “Prendas — como viagens em aviões privados — têm de ser declaradas, a não ser que sejam ‘comida, hospedagem ou entretenimento recebido enquanto hospitalidade pessoal’. Isto está no próprio estatuto dos  e antecede a recente atualização das orientações de arquivo.”

Harlan Crow disse que tanto ele como a mulher são amigos do magistrado e da sua mulher desde 1996, e que os presentes oferecidos “não são diferentes da hospitalidade estendida a outros amigos próximos”. Além disso o milionário esclareceu nunca ter pedido para que uma decisão do juiz no Supremo Tribunal pendesse para determinado lado. “Nunca procurámos influenciar o juiz Thomas em nenhum tema legal ou político. “De um modo geral, desconheço que algum dos nossos amigos pratique lobbying ou procure influenciar o juiz Thomas em algum caso”, explicou o republicano.

No entanto, um grupo de defesa de direitos independente, Accountable.US, considera que o juiz Clarence Thomas terá mentido ao dizer que Harlan Crow não tinha qualquer assunto no Supremo Tribuanal. “Por três décadas, [Harlan] Crow tem servido no conselho de administradores do AEI,  American Enterprise Institute for Public Policy Research (think tank conservador), que tem publicado e creditado vários documentos enviados para o Supremo Tribunal”, explicou o grupo.

Harlan Crow juntou-se ao AEI em 1996, o mesmo ano em que se tornou amigo de Clarence Thomas, o que, para o presidente do Accountable.US é um sinal claro de conluio entre os dois. “Primeiro, o juiz Thomas escondeu décadas de doações luxuosas e viagens financiadas por Harlan Crow, mas agora está a mentir quando diz que este grande doador conservador não tinha qualquer interesse no trabalho do Supremo Tribunal”, afirmou o líder do grupo não partidário. “A verdade é clara: este é um caso sem precedentes de corrupção ao mais alto nível, e os envolvidos devem ser responsabilizados.”

Vários políticos pediram já o impeachement de Clarence Thomas, para que este perdesse a sua posição no Supremo Tribunal. Dick Durbin, senador democrata, considerou que “os juízes do Supremo Tribunal devem ser responsabilizados perante um código de conduta aplicável, assim como qualquer outro juiz federal. O senador terminou com uma promessa: “A comissão de justiça do Senado vai agir.”

Também Alexandria Ocasio-Cortez, congressista de NovaIorque, afirmou que Clarence Thomas deveria ser alvo de impeachement, numa altura em que o tribunal se estava a tornar conhecido “pela corrupção, erosão da democracia e pelo descartar dos direitos humanos“.

Clarence Thomas: nascido na Georgia, mas estabelecido no Supremo Tribunal

O juiz Clarence Thomas nasceu perto de Savannah, no Estado da Georgia, em 1948. Frequentou um seminário entre 1967 e 1968, tendo terminado a Faculdade de Direito em Yale no ano de 1974, altura em que começou a trabalhar no Estado do Missouri. Segundo o site do Supremo Tribunal de Justiça, Clarence foi assistente do procurador-geral do Missouri entre 1974 e 1977.

Em 1981, serviu como Secretário dos Direitos Civis do Departamento de Educação dos Estados Unidos da América. A partir de 1982, e até 1990, foi presidente da Comissão de Igualdade no Trabalho dos EUA. Durante um ano, serviu como juiz no Tribunal da Relação dos EUA do distrito de Columbia. Em 1991, o então Presidente norte-americano George W. Bush nomeou Clarence Thomas juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo assumido o cargo a 23 de outubro de 1991.