Horas após as primeiras notícias sobre a publicação de um artigo, da autoria de três investigadoras, com descrições de episódios de assédio sexual numa instituição de ensino superior, que entretanto se soube tratar-se do Centro de Estudos Sociais (CES), de Coimbra, Boaventura Sousa Santos reagiu, dizendo que vai avançar com um processo-crime por difamação contra as três mulheres.

Mas poderá esse processo-crime ter alguma consequência, uma vez que as investigadoras não identificam qualquer dos intervenientes? A resposta parece ser clara: não, por não se verificarem alguns dos pressupostos do crime de difamação.

No texto — um dos capítulos do livro “Sexual Misconduct in Academia” (Conduta Sexual Imprópria na Academia), publicado pela editora britânica Routledge –, são referidas três personagens-chave que assediavam ou pactuavam com os assédios: o professor-estrela, o aprendiz e a vigilante.

Em nenhum momento as autoras (Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom) identificam o nome real de cada personagem, o nome do centro de investigação, nem tampouco o país onde tudo aconteceu. Ao DN, Boaventura Sousa Santos reconheceu-se, porém, na descrição do professor-estrela, ainda que rejeitasse as acusações.

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“Uma difamação precisa de ter uma pessoa absolutamente concretizável”

Depois dessa primeira reação, já esta quarta-feira, o sociólogo português emitiu um comunicado em que anunciava que iria interpor um processo-crime por difamação contra as autoras do texto “The walls spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia”. “Independentemente dos procedimentos internos e judiciais que o CES vier a adotar, quero informar-vos de que vou apresentar uma queixa crime por difamação contra as autoras”, prometeu.

Difamação. O que diz a lei

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Código Penal. Capítulo VI — Dos crimes contra a honra

Artigo 180.º —Difamação

1 – Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 – A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

O advogado João Medeiros, contactado pelo Observador, explica que “uma difamação precisa de ter uma pessoa absolutamente concretizável”. “Aquilo que posso dizer é que, tendo em conta o que se sabe, não há condições necessárias para isto poder ser passível da prática de difamação contra a honra de alguém que, só por suposições, pode ser adivinhado”

Ricardo Candeias, também advogado, corrobora da interpretação de que sem um alvo concreto não haverá qualquer difamação. “Acho que Boaventura referiu que se reconhece no texto. Em termos de responsabilização das autoras, para haver difamação, seria preciso identificar o autor, que são as tais senhoras, mas depois seria necessário identificar quem é o alvo da difamação. Sem isso não há crime”, diz, abrindo uma exceção: “Só se Boaventura conseguisse demonstrar que aquele texto, com aquelas referências, só poderia estar a referir-se a ele”.

“Probabilidade de dar em alguma coisa é menos de nada”

Mesmo que tudo levasse à adivinhação de um nome, com base, por exemplo, no percurso académico das três investigadoras, que se cruzaram no CES, um tribunal teria sempre de considerar outros detalhes. Candeias explica ainda que “para haver crime de difamação não bastaria que Boaventura se sinta difamado, ou se identifique no que lê, seria preciso que um leitor médio, um pai de família, concluísse, a partir do texto, que o professor-estrela é Boaventura. Que é ele o sujeito destinatário daquelas palavras”. E aí há uma grande dificuldade: “Acho isso difícil, eu não conseguiria identificar com aqueles dados que se tratava daquela pessoa.”

Já João Medeiros considera que neste caso foi o próprio sociólogo a colocar-se como destinatário, ao assumir que se reconhecia nas descrições. “Acho que é mais a vontade de a pessoa se colocar no foco, do que a existência do foco. Sabemos todos os problemas que têm os processos de difamação, nomeadamente com questões que se relacionam com factos: tem de se fazer a prova da inveracidade dos factos e a prova de que esses factos são ofensivos. E, acima de tudo, a prova de que esses factos são ofensivos da honra e consideração de uma determinada pessoa”. O que aqui não existirá, conclui: “Com toda a franqueza, neste caso, acho que todos pressupostos são dificílimos e, portanto, a probabilidade de isto dar alguma coisa é menos que nada”.