Ellen Fullman é indissociável daquilo a que chamou Long String Instrument. Há mais de quatro décadas que a performer, intérprete e compositora norte-americana trabalha este instrumento único, de cordas longas, imaginado e concebido pela própria, usado para explorar harmonias e entoações singulares. Podíamos dizer que vai “trazer” o instrumento ao Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, esta quinta-feira, 13 de abril (19h30), mas “trazer” não é o verbo apropriado aqui. Digamos que o tocará amanhã.
São vinte metros de cordas, dois corredores de encordoamento que atravessam o palco do Teatro. Ellen Fullman fica entre as cordas e com as mãos toca ao longo de toda a sua extensão. O público estará sentado de lado — ou seja, não verão Fullman de frente. Parte do instrumento é sempre construído nos locais onde a música é interpretada, sendo que a artista traz consigo as cordas e as caixas de ressonância que construiu. A estrutura onde as caixas assentam – essenciais para todo o processo – são montadas no local. Sítios diferentes obrigam a soluções diferentes e, apesar de ter quase setenta anos, tocar o Long String Instrument é um processo de aprendizagem em curso para a artista.
Atua em Lisboa a solo depois de ter passado pelo Rewire Festival (Haia), onde tocou com um grupo de músicos. Está em Lisboa há alguns dias, a montar e a preparar o instrumento: demora tempo e a afinação é precisa. Conversámos com ela a meio desse processo e mostrou-nos como tudo funciona, ou melhor, como se faz ouvir este instrumento, num misto de harmonia e imponência. Ao fim de algum tempo, torna-se algo espiritual, num misto de drone, jazz e música ambiental: pouco importa o género, Ellen Fullman gera uma experiência auditiva única. Ao longo desta conversa, já em Lisboa, volta-se com frequência à palavra essência, a norte-americana diz-nos que era isso que andava à procura, sem o saber, e que a experiência de tocar e compor lhe tem mostrado o caminho.
[Ellen Fullman ao vivo no Museu de Arte Contemporânea de Detroit:]
O instrumento é monumental, habituei-me a vê-lo em fotografias, mas ao vivo é totalmente diferente. Sei que tocou neste fim de semana no festival Rewire [em Haia]…
Sim, ainda estou um pouco cansada…
Tem tocado mais na Europa na última década?
Provavelmente…
E porquê? Tem notado alguma mudança no seu público?
Recebo cada vez mais uma resposta positiva, creio que isso está relacionado com a forma como o meu trabalho tem evoluído. Tenho percebido que eu própria ando a ter uma resposta mais positiva ao meu trabalho e creio que as pessoas reagem a isso. O processo, enquanto artista, de me encontrar tem demorado anos, décadas. Ando agora a aperceber-me disso. Por consequência, creio que isso se revela nas relação que estabeleço com quem me ouve e me vê.
O que encontrou?
Estou a ouvir o som que produzo de uma forma mais multidimensional, pela forma como trabalho com as harmonias. Sinto cada vez mais que é algo a que posso dar forma, algo que posso moldar, e isso leva-me aos princípios da vibração das cordas, quero partilhar isso com as pessoas. Foi como se interiorizasse o entendimento da física da vibração de cordas, que é algo muito excitante de experienciar, porque é muito complexo. O lado matemático de tudo isto também é muito bonito. Estou muito mais envolvida hoje nisso do que há uns anos.
Isso quer dizer que de alguma forma está a ir à essência?
Sim!
Era algo que procurava de forma deliberada?
Foi algo que sempre procurei, sim… mas por vezes procura-se algo sem saber exatamente o que se está a procurar, não é?
Há um álbum seu, In The Sea [editado em 1987], que acho fascinante. Sempre que o oiço com headphones fico com a sensação de que o som está a vir de fora. Ou algum sítio que não consigo localizar.
Isso é interessante. Gosto desse tipo de coisas, essas reações inesperadas e singulares, mas não sabia que isso acontecia. Não o fiz intencionalmente.
E isso leva-me a esta pergunta: como grava o som do instrumento?
Há anos que ando a trabalhar nisso para procurar a forma certa. Durante a pandemia acho que descobri, embora ainda não tenha editado nada com essa configuração. A minha parceira [a violoncelista Theresa Wong] decidiu que queria aprender os princípios da gravação de som, por isso, testou diversos microfones, diferentes configurações, e conseguimos perceber o que funcionava bem para o meu instrumento…
Como fazia até então?
Ainda uso um DPA412, um microfone condensador, que é um microfone que tem uma tecnologia que era usada para registar atividade sísmica. Trabalho com ele há trinta, quarenta anos… Gosto de como soa, mas sinto a necessidade de procurar coisas novas. Só que este instrumento dá-me imensas preocupações. Tenho imensas coisas com que me preocupar e a gravação é só uma delas. A verdade é que nunca fiquei muito contente com a qualidade das gravações e, recentemente, descobri que os Ribbon são ótimos para reproduzir o som dos meus ressonadores. Depois, uso dois microfones omnidireccionais para apanhar a sala. É algo muito simples, mas faz toda a diferença. Mas ainda não editei nada com esta configuração.
Sobre essas “muitas coisas” que a preocupam: uma delas é o instrumento em si? O facto de ter de construir parte da estrutura em cada sítio que toca, não é um problema?
Claro! Nunca sei o que esperar até ao momento do concerto. Só aí sei que tudo está a funcionar. Ajustar a tensão de cada corda e as afinações é essencial para este trabalho, é fundamental que o tom esteja na afinação correta, porque é essencial para a forma como as harmonias se relacionam.
E o som da sala, a acústica?
É mais o medo do instrumento colapsar. Isso assusta-me de morte. Porque em relação ao som… estou num momento na minha vida em que conheço muito bem o instrumento, funciona através do toque, como uma técnica de arco. Ganhei uma familiaridade com ele que me permite fazer adaptações e é assim que tem funcionado nos últimos anos. Fico sempre feliz com os concertos que dou, mesmo que haja pequenas diferenças na acústica. Ajuda também agora amplificar o som, demorei anos a perceber e a executar isso. Gosto de um som intrusivo, mas que seja natural e não com um volume muito elevado. Ter amplificação ajuda a criar loops de feedback e, com isso, o instrumento ressoa mais.
Não parou de aprender nestas quatro décadas?
Aprendo cada vez mais, não é algo estático. Faço a mesma coisa, mas é algo dinâmico para mim.
De onde surge a ideia de criar este instrumento?
Estava a estudar escultura, mas o que eu gostava mesmo era de performance. Sempre gostei de som, sou de Memphis, conhecida pelo nascimento do rock’n’roll e dos blues. Adoro som e adoro música, mas nunca estudei isso. Quando estudei escultura, notei que os materiais com que trabalhava produziam diferentes entoações. Comecei a trabalhar com isso, sem saber exatamente no que se iria tornar. O processo de desenvolver o Long String Instrument surgiu com o conhecimento crescente que fui tendo de música. E o que começou por ser uma instalação sonora tornou-se depois num instrumento musical. E a minha identidade de performer evoluiu para compositora. Foi um processo gradual.
Foi misturando arte com a ciência do som?
Isso é importante, porque como humanos queremos transformação. Não desejamos que a arte seja feita só de factos, queremos algo mágico, transformativo. Esse é o meu sentido, sinto que o que faço se torna em algo positivo para mim e para os que me ouvem. Mas não consigo realmente definir o que é…
É a tal essência. Nas últimas duas décadas tem tocado com regularidade com outros músicos. O primeiro álbum seu que ouvi foi, curiosamente, um com o Konrad Sprenger [Ort, de 2004]. É algo que procura ou são os outros músicos que vêm ter consigo?
É mútuo. Parte disso tem a ver com pragmatismo. No início eu tocava com um grupo de músicos que tocavam o instrumento comigo, mas por causa dos orçamentos das digressões, tornou-se impossível viajar com eles. No Rewire isso voltou a acontecer porque havia orçamento. Mas as coisas têm acontecido por razões diferentes, no caso do Konrad Sprenger, eu estava intrigada com o trabalho dele. Conheci-o em Berlim e demo-nos muito bem, adoro os sons que ele produz e como pensa. Durante anos colaborei com ele e a sua guitarra mecânica, mas nunca editámos nada com isso. Mas gostava de o fazer um dia.
E essas colaborações ajudaram-na a encontrar a essência de que falava?
Sim… mas parece-me também que, nos últimos anos, encontrei uma estratégia de composição que facilita tudo isto: escrevo as partes dos outros instrumentos de uma forma que apoiam os sons que estão a sair do meu instrumento. Os outros sons são satélites que andam à volta do núcleo, da essência. É mais uma estratégia do que outra coisa qualquer…
Voltando ao instrumento que está aqui à nossa frente: o que pode correr mal quando tem o instrumento a ser feito em cada local onde toca?
Há um desenho que envio da estrutura. Mas quando chego a qualquer lado há sempre algo que não é feito da forma como pedi ou há algo que não perceberam bem. Por exemplo, aqui não puseram contraplacado por baixo da estrutura. A solução foi aparafusar ao chão. Ou seja, só tinham a moldura. Por outro lado, achei interessante que o palco tenha a altura exata, não é preciso colocar nada para elevar o instrumento daquele lado: está no chão. E isso é interessante. Há sempre variações. E eu documento sempre tudo para incorporar isso na lista de possibilidades do instrumento.
Claramente mais um dos casos em que a pandemia obrigou a uma paragem absoluta. Como tem sido agora o regresso?
Comecei a tocar no final do ano passado, o meu primeiro concerto foi em Estrasburgo. Recomecei tarde. Aqueles dois anos foram interessantes para mim, vivi um período de maior interiorização e concentração. Foi durante esse período que compus a peça que toquei no Rewire. A pandemia funcionou bem para mim, gostei de ter tempo para me concentrar. Mas voltar aos concertos tem sido um processo lento e gradual…