72 Seasons ultrapassa o antecessor Hardwired… to self-destruct (2016) para o título de “melhor disco de originais de Metallica dos últimos 25 anos”. O elogio soa generoso, mas deve ser lido com cautela. Afinal, superar os anteriores St. Anger (2003) e Death Magnetic (2008) estava longe de ser uma tarefa exigente: juntamente com Reload (1997), estes são os discos de originais menos interessantes da discografia da banda — aos quais se juntariam facilmente a coletânea de versões Garage Inc. (1998) e a colaboração com Lou Reed em Lulu (2011). É consensual que a carreira dos Metallica se divide em dois grandes períodos: o pré fenómeno global do black album Metallica (1991), quando naqueles anos iniciais de genialidade lançaram obras-primas como Ride the Lightning (1984), Master of Puppets (1986) e …And Justice for All (1988); e os 30 anos pós Black Album, ao longo dos quais a banda viveu artisticamente atormentada entre o art rock (Load, de 1996), o metal alternativo e tentativas (frustradas) de modernizar o seu thrash metal. Numa frase: os Metallica passaram as últimas duas décadas a andar para frente olhando para trás.
Este enquadramento é imprescindível para perceber o novo disco dos Metallica, porque 72 Seasons nasce da complexa relação dos músicos com o seu passado, em particular o vocalista James Hetfield. O título (em português, “72 estações”) refere-se aos primeiros 18 anos de vida (4 estações por ano multiplicadas por 18 anos dá 72), com a capa do disco a aparecer simbolicamente preenchida pelo contraste entre um amarelo luminoso e o negro de objetos carbonizados, como que sugerindo uma ideia irrecuperável de juventude (nem sempre feliz) — um berço quebrado, brinquedos, uma guitarra elétrica semelhante à que Kirk Hammett usava nos anos 80, uns auscultadores com fio, um skate, dois peluches, entre quase 30 objetos. Ou seja, a associação à juventude dos próprios membros dos Metallica não é um pormenor, mas sim o coração deste disco. Ora, se por um lado tal não faz de 72 Seasons um disco conceptual na interpretação pinkfloydiana do termo (não há uma narrativa contínua, por exemplo), por outro lado a omnipresença de elementos biográficos (pessoais e musicais) cria um fio condutor na sonoridade e nas letras das canções que percorre os (demasiado longos) 77 minutos do disco.
[o vídeo de “72 Seasons”:]
Em termos sonoros, falar de juventude e de Metallica implica recuar à fundação do thrash metal, estilo que ajudaram a definir ao longo da década de 1980. É aí que estão plantadas as raízes de 72 Seasons, sendo claro que os Metallica tentaram respeitar o legado da “velha guarda” do género — como, aliás, haviam tentado nos dois discos anteriores —, apesar de não resistirem também a incursões pela vertente mais groovy, alternativa e roqueira (como na canção “Sleepwalk My Life Away”). O resultado é interessante, sem ser brilhante, apesar de 72 Seasons ter alguns dos melhores momentos da banda desde 1996.
A canção “Lux Æterna”, escolhida para primeiro single de antecipação, é um desses momentos e, não fosse a produção cristalina do século XXI, poderia perfeitamente constar no disco de estreia Kill’em All (1983), que celebra 40 anos em 2023. Thrash metal clássico, rápido e direto, com segmentos que soam inspirados da canção “Hit the Lights”, que abre o disco de 1983, e com uma batida que lembra a fúria de viver de uns Motorhead no arranque dos anos 80. O que, aliás, alinha perfeitamente com o tema da canção (emancipação), na qual James Hetfield se enche de adrenalina e grita “full speed or nothing” (velocidade máxima ou nada).
“Screaming Suicide”, outra canção que serviu de single, também se inspira no reportório thrash metal da banda, mas numa fórmula mais longa e menos eficaz. O mesmo acontece na faixa que arranca e dá título ao disco — uma canção que parte de uma contagiante batida de thrash metal, mas que se vai dispersando desnecessariamente ao longo de 8 minutos, sem razão aparente. Eis um problema comum em várias canções deste novo disco: há boas ideias e segmentos orelhudos, mas que resvalam para divagações longas e desinspiradas de rock musculado (“You Must Burn!” ou “Crown of Barbed Wire”) ou de metal alternativo — como “If Darkness Had a Son”, que inicialmente entusiasma e depois acaba a soar a um b-side dos discos Load (1996) ou Reload (1997).
[o vídeo de “Lux Æterna”:]
Após várias audições, persistem três constatações sobre 72 Seasons. A primeira é que os Metallica escreveram as canções deste novo disco em busca de um equilíbrio difícil: por um lado, quiseram soar frescos; por outro, decalcaram a estrutura das canções e dos seus discos até 1991. Além das já referidas colagens muito explícitas aos dois primeiros discos, há vários acordes e trechos que soam demasiado próximos aos que se ouvem em And Justice for All (1988) ou no próprio Black Album de 1991 — por exemplo, em “You Must Burn!” ouve-se perfeitamente o groove do clássico “Sad But True”. Em si mesmo, isto não é criticável e, reconheça-se, até encaixa no conceito do disco. Só que tem uma consequência: a familiaridade remete o ouvinte para comparações constantes com o universo sonoro dos jovens Metallica — comparações nas quais 72 Seasons perde sempre, prejudicando a perceção geral sobre o disco. Até porque, muito para lá da pureza do thrash metal, a comparação expõe a ausência no novo disco de elementos distintivos dos jovens Metallica: não há momentos melódicos, semi-acústicos e introspetivos (como no passado fizeram em clássicos como “Fade to Black” ou “One”); não há tonalidades instrumentais épicas como “Orion” ou “The Call of Ktulu” (não por acaso, esta última ficou sublime quando tocada com a Orquestra de São Francisco, em S&M de 1999).
A segunda constatação é que o disco tem um protagonista claro: James Hetfield. 72 Seasons será um dos álbuns mais pessoais do vocalista, guitarrista e co-fundador da banda (à beira dos seus 60 anos), quase como se o tivesse concebido no sofá das suas sessões de psicoterapia: uma reflexão sobre as raízes familiares, sobre uma juventude explosiva de rejeição, raiva, abandono, alienação, e sobre uma sobrevivência adulta alicerçada na música e no abuso (e dependência) de substâncias. Obviamente, esse protagonismo não apaga a influência do baterista e co-fundador Lars Ulrich que, como co-compositor, se reconhece em todo o disco (como é tradição, a produção dá realce excessivo ao som da bateria). O ponto é que, de certo modo, se percebe que James Hetfield guiou o processo, carregou este disco aos ombros e arrastou os Metallica para a sua busca de um sentido naquele passado irrepetível, simultaneamente atraídos e repelidos pelo abismo onde mergulharam nos tempos juvenis (e turbulentos) da sua genialidade.
[ouça o novo “72 Seasons” na íntegra através do Spotify:]
A terceira sensação é que os Metallica estão cheios de ideias, o que poderia ter sido bom caso tivessem escolhido um produtor que os convencesse a não as incluir todas no disco. A soma das 12 novas canções resulta numa miscelânea de registos sonoros nem sempre consistente, que se arrasta por 77 minutos, e o disco teria beneficiado claramente em ser duplamente mais curto — evitando que as canções se alongassem em divagações e deixando cair as canções inferiores. Quem acompanha os Metallica sabe que o problema não é novo: desde Load (1996) que cada novo disco de Metallica ultrapassa os 70 minutos. Neste caso, Greg Fidelman, produtor de 72 Seasons, produziu também o disco anterior e não será coincidência que ambos os discos tenham 12 faixas e 77 minutos de duração. Compreende-se que dizer “não” a James Hetfield e a Lars Ulrich possa ser intimidante para um produtor, mas dizer “sim” a tudo não contribuiu para que 72 Seasons saísse um grande disco.
Enfim, ninguém esperaria que os Metallica de hoje, com 40 anos de carreira e quase 60 de idade, lançassem o melhor disco das suas vidas. Mais evidente ainda: não há música nova que os Metallica possam lançar (goste-se ou odeie-se) que belisque o seu estatuto de maior banda de metal do planeta. Com ou sem álbum novo, os Metallica continuariam a vender discos como pãezinhos quentes (compraram recentemente uma das maiores fábricas de discos de vinil nos EUA, para produção exclusiva das suas edições e reedições), assim como continuariam a esgotar estádios e arenas por todo o mundo. Por isso, antes de julgar este novo disco, há que ajustar as expectativas: sim, daqui a uns anos, deverão ser poucas as canções de 72 Seasons a sobreviver nos alinhamentos dos concertos da banda; mas, apesar dos seus defeitos, o álbum reúne alguns dos melhores momentos dos Metallica desde 1996. Só isso merece nota positiva: para quem achasse que já não tinham nada a oferecer, o disco será uma agradável surpresa.