É uma das alterações da “agenda do trabalho digno”, que entrará em vigor em maio. Os trabalhadores independentes que prestem mais de 50% da sua atividade para a mesma entidade ou grupo vão poder designar um outro trabalhador para o substituir em caso de “nascimento, adoção ou assistência a filho ou neto, amamentação e aleitação, interrupção voluntária ou risco clínico durante a gravidez”. Os advogados consultados pelo Observador divergem sobre se a entidade beneficiária dos serviços poderá ou não opor-se à substituição. O Governo não esclarece.

A alteração foi proposta pelo Governo no âmbito das mudanças à lei laboral, num artigo que já existia no Código do Trabalho e que garante aos trabalhadores independentes economicamente dependentes a aplicação das normas legais respeitantes a direitos de personalidade, igualdade e não discriminação e segurança e saúde no trabalho. A proposta do Governo introduz uma alteração importante: “o prestador de trabalho pode assegurar temporariamente a atividade através de terceiros em caso de nascimento, adoção ou assistência a filho ou neto, amamentação e aleitação, interrupção voluntária ou risco clínico durante a gravidez, pelo período de tempo das correspondentes licenças ou dispensas previstas no presente Código”.

Esta alteração foi criticada pelo novo presidente da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), Armindo Monteiro, no discurso de tomada de posse, onde mencionou um parecer do constitucionalista Paulo Otero — que, assegura o novo “patrão dos patrões”, concluiu pela inconstitucionalidade da norma, a par da proibição do recurso ao outsourcing após despedimento coletivo ou por extinção de posto de trabalho. O entendimento da CIP é que a lei, como está escrita, não dá às empresas margem para recusar a designação de outro trabalhador pelo que é substituído.

Segundo a lei, é considerada uma situação de dependência económica quando mais de 50% do produto da atividade do prestador provém do mesmo beneficiário ou de várias empresas beneficiárias entre as quais existe uma relação societária de participações recíprocas, de domínio ou grupo.

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Litígios ao virar da esquina?

O Observador questionou o Ministério do Trabalho sobre que entendimento tem quanto à possibilidade de a entidade beneficiária dos serviços se opor à substituição, mas não obteve resposta. Entre os advogados consultados, não há consenso.

“A possibilidade de os trabalhadores independentes economicamente dependentes serem substituídos por terceiros depende do acordo das partes“, considera Isabel Araújo Costa, associada sénior da Antas da Cunha ECIJA. Aliás, “chocaria se assim não fosse”: a entidade contratante seria obrigada a beneficiar de serviços “prestados por um terceiro que desconhece completamente e que, em primeira instância, não escolheu contratar”. “A lei determina esta substituição como uma possibilidade na esfera do trabalhador independente, não impondo que aconteça, com a escolha do verbo ‘poder‘ e não ‘dever‘”, argumenta.

Ana Gradiz Correia, coordenadora do departamento laboral da Gómez-Acebo & Pombo, concorda que continua a ser preciso acordo: o que o artigo prevê não tem caráter “imperativo”, é apenas uma possibilidade para o prestador de trabalho. “O contrato de prestação de serviços é designado pela doutrina como um contrato intuitu personae, isto é, um contrato que é celebrado em razão da pessoa que vai ser contratada, pelas características pessoais e profissionais daquela pessoa em concreto. No meu entendimento, a entidade contratante da prestação de serviços pode opor-se a que os serviços contratados sejam realizados por terceiro”, defende.

O princípio da liberdade contratual também ajuda a justificar esta posição, diz: se a entidade contratante escolheu o prestador inicial de atividade, terá de ter também liberdade para decidir se aceita ou não a substituição. Caso tenha dado o seu aval à substituição, a especialista em direito laboral crê que o substituto pode ser escolhido pela entidade contratante ou proposto pelo prestador de trabalho inicial.

Quem tem outra interpretação é Madalena Moreira dos Santos, associada coordenadora de direito laboral da Pares Advogados: “A lei não confere à entidade beneficiária dos serviços qualquer direito de oposição“. Por isso, antecipa que esta substituição temporária se torne “um foco de litígio entre as partes pois irão certamente colocar-se problemas de confidencialidade da informação, proteção de dados, de qualidade do serviço contratado, entre outros”.

E quando há substituição, a entidade beneficiária dos serviços paga o ordenado do novo trabalhador a quem? Aqui está outro foco de divergências uma vez que a lei não detalha esta questão. Madalena Moreira dos Santos, da Pares Advogados, considera que o pagamento deve ser feito ao primeiro prestador de atividade porque é quem, na prática, contrata o substituto para assegurar a atividade que ele próprio não pode prestar.

Para Ana Gradiz Correia, da Gómez-Acebo & Pombo, depende de quem escolheu o substituto: se tiver sido a entidade contratante será esta a pagar diretamente ao trabalhador substituto; se tiver sido o prestador de trabalho será este a pagar. E se o substituto tiver sido escolhido por acordo entre as partes, o responsável pelo pagamento é aquele que ficar definido no acordo.

Já Isabel Araújo Costa, da Antas da Cunha ECIJA, entende que este tipo de substituições constitui uma “cessão da posição contratual”, que já está prevista no Código Civil: “No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão”. Para a advogada, o trabalhador substituto passará a assumir, temporariamente, a posição contratual de prestador de serviços, “logo é a ele que tem de ser pago o preço/honorários fixados”.

A advogada, que entende que é necessário um acordo das partes para a substituição, acredita que, por isso mesmo, “nem se deve colocar” um cenário em que a entidade contratante cesse um contrato com receio de que o trabalhador possa designar alguém. Mas se se der o caso de não concordar com a substituição pode, “nos termos da lei e nos termos contratualmente ajustados, pôr termo ao contrato de prestação de serviços porque a pessoa que escolheu, ainda que temporariamente, deixou de poder assegurar atividade contratada”.

Madalena Moreira dos Santos discorda: a entidade beneficiária pode sempre fazer cessar o contrato de prestação de serviços “nos termos gerais do direito”, mas se a motivação para a cessação da atividade se relacionar com o exercício deste novo direito, a cessação pode ser ilícita.

Medida visa proteger trabalhadores independentes, mas vai conseguir?

Dar ao trabalhador independente a possibilidade de designar um substituto pode dar-lhe alguma proteção adicional em períodos de licença — que, para muitos ‘recibos verdes’, são sinónimo de inatividade, logo, perda de rendimentos. Mas algumas das advogadas consultadas admitem que possa ter o efeito contrário.

Para Isabel Araújo Costa, da Antas da Cunha ECIJA, a medida poderia ser vantajosa no sentido em que permite ao trabalhador independente “manter vivo o vínculo contratual” apesar de entrar em licença, o que representa um reforço da proteção dos independentes. Ao mesmo tempo, a entidade contratante pode beneficiar da “continuidade dos serviços, ainda que por outra pessoa diferente”. A especialista não acredita que tenha um “efeito contraproducente” nem leve “as entidades contratantes a cessar contratos com receio desta possibilidade de existir uma substituição”.

Madalena Moreira dos Santos, por outro lado, tem dificuldades em encontrar vantagens na medida, “que parece pressupor que todos os prestadores de serviços são, afinal, trabalhadores”. E antecipa mesmo que leve as empresas a optar pela prestação de serviços por entidades empresariais “de modo a evitar a aplicação forçada destas alterações”. Mais: não acredita que a medida tenha efeitos práticos, porque um trabalhador não quererá ser substituído por alguém “que lhe pode fazer concorrência” e porque os beneficiários da atividade “se veem confrontados com a eventual obrigação de permitir o acesso de terceiros às suas instalações e à sua organização interna”.

Ana Gradiz Correia vê esta alteração como mais um mecanismo para travar a falsa prestação de serviços, na perspetiva em que se a entidade tem necessidade de determinada atividade prestada pela pessoa em concreto “então que a mesma seja prestada com recurso à contratação de um trabalhador”. Mas, por outro lado, o legislador “limita” ou “impede” o livre funcionamento dos mercados, aponta.