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Chico Buarque recebeu o Prémio Camões e agradeceu a Bolsonaro a "fineza" de não o "sujar" com a sua assinatura

Este artigo tem mais de 1 ano

Crítica à posição de Bolsonaro de não entregar o Prémio Camões a Chico Buarque foi transversal aos discursos de Marcelo, Lula e do músico. Política invadiu entrega de prémio com quatro anos de atraso.

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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Tardou, mas chegou. Quatro anos após o anúncio, Chico Buarque recebeu esta segunda-feira à tarde, no Palácio de Queluz, o Prémio Camões. O diploma foi entregue pelo presidente do júri de 2019, Manuel Frias Martins, depois de assinado por Inácio Lula da Silva, que se encontra em Portugal para uma visita de Estado de cinco dias. Jair Bolsonaro foi o ponto que uniu os discursos de Buarque, Lula e Marcelo, com os três a mostrarem-se alinhados no ataque ao ex-Presidente do Brasil.

Referindo-se ao antigo Presidente brasileiro, que se recusou a assinar a documentação relativa ao prémio, impedindo que o escritor e compositor o pudesse receber, Buarque declarou que este teve a “rara fineza” de “não sujar” o diploma com a sua assinatura, deixando o “espaço em branco para a assinatura do nosso Presidente Lula”. A “fineza” é uma expressão que Buarque usa na música “Apesar de Você” para interpelar a ditatura militar, que acusa de “inventar a tristeza” e à qual pede a “fineza” de a “desinventar”.

Brincando que se começava a questionar se algum dia receberia o prémio por terem passado quatro anos desde que foi anunciado, o escritor e compositor descreveu esse período como o tempo de “um governo funesto” no Brasil que levou “uma eternidade” a passar, “porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás.”.

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“Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso nos podemos nos distrair, porque a ameaça fascista persiste no pais e um pouco por toda a parte”, alertou Buarque, dedicando o Camões aos milhares de artistas brasileiros que foram “humilhados por estupidez e obscurantismo” durante os quatro anos da Presidência de Bolsonaro.

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Durante o seu discurso, Buarque recordou a sua história, a influência central do pai, o académico e jornalista Sérgio Buarque de Hollanda, na sua formação literária e também política. O escritor e compositor partilhou ainda com a audiência em Queluz, que incluía várias personalidades do mundo das artes e da política dos dois países, uma descoberta recente: que descende, do lado materno, de um casal de judeus portugueses que se estabeleceu no nordeste brasileiro no século XVI.

“Enquanto descendente de judeus sefarditas, pode ser que algum dia também eu alcance o direito à cidadania portuguesa”, brincou, admitindo que Portugal é um país onde se sente “mais ou menos em casa”.

Marcelo não quis “chorar o leite derramado”, mas deu bicadas a Bolsonaro

Marcelo Rebelo de Sousa não ignorou os quatro anos que passaram entre o anúncio da atribuição do Prémio Camões e a sua entrega, “uma longa espera para concretizar uma evidência”. O Presidente disse mesmo — fazendo um trocadilho com um dos livros de Chico Buarque — que “não vale a pena chorar pelo ‘Leite Derramado'”. Mas antes disso, não deixou de enviar as suas bicadas a Jair Bolsonaro.

Para Marcelo, sendo Chico Buarque “parte integrante do nosso património comum, num patamar em que muito poucos se lhe comparam, seja em engenho ou empatia”, não vê o “porquê” de se sentir “alguma redundância ou dissonância” em atribuir-lhe o prémio de literatura em língua portuguesa.

Visando diretamente a administração Bolsonaro, Marcelo lembrou “que aqueles que não gostaram do Camões atribuído a Chico, se dispensaram do absurdo de alegar deméritos estéticos”. Optaram, ao invés disso, de “contestar as ideias e as opiniões do cidadão Francisco Buarque de Hollanda, que a elas tem direito e que por elas deu a cara, tanto em liberdade, como na ditadura”.

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Marcelo, que comparou o Camões atribuído a Buarque, com o Nobel atribuído a Bob Dylan, numa alegoria da montanha, lembrou que até o “Evereste Dylan” (a montanha mais alta, nas palavras de Leonard Cohen), “teve os seus detratores”. Logo, não é de estranhar que o músico e escritor também o tenha tido.

Para Marcelo, se o português é a Língua de Camões, também não deverá haver “português ou lusófono” a quem faça confusão utilizar a referência ao português como “Língua de Chico Buarque”, tendo em conta “a altura, a emoção, a ductilidade, a imaginação, a que ele levou o português cantado por si e por tantos”. E pediu desculpa pelo atraso de que não tinha culpa partindo da música “Meu caro, amigo”, do próprio Chico Buarque: “Meu caro amigo me perdoe, por favor, essa demora”.

Lula fez política com o Prémio: “Hoje já é outro dia”

O Presidente do Brasil também aproveitou a cerimónia, como se esperava, para o ataque a Bolsonaro e ao bolsonarismo. Lula da Silva disse estar a “corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prémio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi. Todos nós sabemos porquê”.

Visando o seu antecessor, Lula da Silva defendeu que “o ataque à cultura em todas as suas formas, foi uma dimensão importante do projeto que a extrema-direita tentou implementar no Brasil”. E acrescentou: “Se hoje estamos a fazer essa reparação é porque, finalmente, a democracia venceu no Brasil”.

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O Presidente brasileiro fez ainda um paralelismo entre a não entrega do prémio pelo seu antecessor e a censura das ditaduras no Brasil e em Portugal: “Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes, também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuram o próprio Chico no Brasil e em Portugal”. E concluiu: “Esse prémio é a resposta do talento contra a censura, do engenho contra a força bruta”. Lula da Silva referiu-se a à música “Apesar de Você”, mas sem a nomear: “Hoje já é outro dia”.

Manuel Frias Martins: “Obrigado, Chico Buarque, por toda a arte e beleza que nos trouxe”

O presidente do júri do Prémio Camões de 2019, o académico português Manuel Frias Martins, ao qual coube fazer o discurso de abertura da cerimónia, destacou a ética e o alcance humanístico da obra de Chico Buarque nas suas mais diversas vertentes.

Defendendo que o premiado “marcou a cultura portuguesa do último meio século”, Frias Martins afirmou que os poemas que constam das canções de Buarque “são abraços que unem continentes onde se estuda a língua portuguesa em toda a sua riqueza e variedade”. O académico desejou que a atribuição do prémio, “que peca por tardia mas não por imerecida”, sirva para “reforçar a união das nações que se entendem em português”.

“Obrigado, Chico Buarque, por toda a arte e beleza que nos trouxe”, concluiu o presidente do júri de 2019, composto também por Clara Rowland (Portugal), Antonio Cícero e Antonio Hohlfeldt (Brasil), Ana Paula Tavares (Angola) e Nataniel Ngomane (Moçambique).

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A decisão de entregar o Prémio Camões, o mais importante galardão de literatura em língua portuguesa, a Chico Buarque foi tomada a 21 de maio de 2019. O júri fundamentou a escolha, tomada por unanimidade, com a “qualidade e transversalidade” da obra do escritor e compositor, “tanto através de géneros e formas, quanto pela sua contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”.

Para os jurados, a atribuição do mais importante prémio de literatura em língua portuguesa ao músico e escritor reconhece “o valor e o alcance de uma obra multifacetada, repartida entre poesia , drama e romance”, um trabalho que “atravessou fronteiras e se mantém como uma referência fundamental da cultura no mundo contemporâneo”.

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